A desconhecida história sobre as
negociações da dívida grega
Por Vicenç Navarro*
A grande maioria dos meios de informação e persuasão
espanhóis apresentou as negociações que têm ocorrido entre as maiores
instituições do sistema financeiro (tanto o Banco Central Europeu, BCE, como o
Fundo Monetário Internacional, FMI) e políticos europeus (a Comissão Europeia,
o Conselho Europeu e o Eurogrupo, dominado pelo governo alemão), por um lado, e
o governo Syriza, da Grécia, por outro, como um desencontro originado pela
suposta rigidez e incompetência do último, apesar da paciência e comportamento
racional dos primeiros. Em artigos anteriores questionei esta visão tão
complacente e pouco crítica, reproduzida como parte do saber convencional (ver “La
canallada que le están haciendo a Syriza en Grecia”, Público, 11.06.15) e promovida pelos gurus mediáticos e económicos,
todos eles de nítida sensibilidade neoliberal. […]
A evidência científica abundante […] mostra o erro e/ou
falácia da dita versão oficial. A última evidência desta falsidade acaba de ser
dada por uma pessoa que conhece bem a trama política que esteve por detrás das
políticas aprovadas pelas instituições do sistema financeiro e político europeu
citado anteriormente e impostas à população grega. A referida pessoa á nada
menos que Philippe Legrain, antigo assessor de quem foi Presidente da Comissão
Europeia, o Sr. José Manuel Barroso, e que mostra essa evidência no testemunho
apresentado na Comissão de Análise da Dívida Pública do Parlamento grego, apenas
há uns dias, a 11 de Junho (ver também o artigo do economista James K.
Galbraith, “Bad Faith. Whay
Real Debt Relief Is Not On the Table for Greece”, Social Europe Journal, 18.06.15).
Segundo o Sr. Legrain, o problema teve início em Maio de
2010, quando o FMI percebeu que o Estado grego não poderia pagar nunca a sua
dívida pública acumulada, o que causaria um problema grave para os bancos que a
haviam comprado, consequência das suas grandes quantidades de dívida pública
adquirida por esses bancos. A sua sobrevivência estava claramente ameaçada.
Segundo o Sr. Legrain, o governo alemão tinha também consciência deste grande
problema, como os demais elementos do sistema financeiro europeu, incluído o
BCE. Todos sabiam que a bancarrota do Estado grego criaria um problema
gravíssimo para os bancos que possuíam aquela dívida pública. E este problema
podia converter-se num problema político maior. Os bancos estrangeiros (não
gregos) que tinham mais dívida pública grega eram os franceses e os alemães
(embora também estivessem os espanhóis), que haviam sido muito activos na
compra da dívida grega, que gerava uns juros já então muito elevados.
Até aqui o primeiro capítulo do drama, um drama baseado na
cumplicidade entre as instituições financeiras (FMI e BCE), por um lado, e as
instituições políticas que governam os países do euro (a União Europeia e os
principais governos da Eurozona), por outro, para salvar não a Grécia, mas os
maiores bancos privados. Dois cidadãos franceses tiveram um papel-chave nesta
trama. Um foi o Presidente do FMI, o Sr. Dominique Strauss-Khan, que pensava
deixar o FMI para se apresentar às eleições francesas como candidato do Partido
Socialista francês, para o cargo de Presidente do país. O outro francês era o
Presidente do Banco Central Europeu, o Sr, Jean-Claude Trichet, consciente
também das eleições francesas e do desastre que podia ocorrer se alguns dos maiores
bancos franceses colapsassem. Preocupação semelhante havia na Alemanha, onde a
comunidade bancária gozava (e continua a gozar) de uma enorme influência sobre
o Estado Federal alemão. Daí que as instituições se mobilizassem para salvar,
repito, não a Grécia, mas os bancos, como expôs claramente o Sr. Philippe Legrain.
E foi assim que se deu o resgate à banca por parte do FMI, do BCE e dos maiores
governos da Eurozona, comprando-lhe a dívida grega, que ela havia adquirido,
plenamente conscientes (repito, plenamente conscientes) de que o Estado grego
nunca poderia pagar a dita dívida. Era óbvio que todos os actores daquele drama
conheciam isto, embora todos mantivessem um silêncio ensurdecedor, com o
objectivo de ocultar uma situação que, se fosse conhecida, teria criado uma
revolta popular nos países cujos governos estavam a salvar bancos privados com
dinheiro público, comprando-lhes uma dívida pública que nunca poderia ser paga.
Porquê os cortes? O
segundo capítulo do drama
O segundo capítulo do drama foi a intensidade e a
brutalidade (não há outra forma de o dizer) dos cortes na despesa pública
impostos à população grega, uns cortes sem precedente num país europeu em tempo
de paz. Estes cortes tinham como objectivo conseguir que o Estado grego
pagasse, primeiro aos bancos privados e, mais tarde, às instituições
financeiras citadas anteriormente e aos Estados que tinham comprado aos bancos
privados os seus títulos de dívida pública grega. Estes cortes foram impostos
ao povo grego com pleno conhecimento do enorme dano que causariam, tanto ao
bem-estar da população como ao estado da economia grega. O FMI havia estimado
que tais cortes originariam uma descida de 5% do PIB. Na realidade, foi muito
pior. O PIB grego desceu nada menos que 20% (alguns crêem que foi inclusive
mais, uns 25%).
O que é importante assinalar é que outro dos maiores
objectivos destes cortes foi o de determinarem uma descida da dívida pública
grega, objectivo que (como era fácil de prever), não só não se alcançou como se
conseguiu precisamente o contrário. A dívida pública aumentou de forma notável,
alcançando 150% do PIB em 2013. Como indicou o Sr. Legrain, na sua declaração
perante o Parlamento grego, nenhum desses “especialistas” do FMI foi penalizado
pelos seus erros, erros que definiu como “estupidezes”, consequência da
aceitação acrítica do dogma neoliberal.
Mas, outro objectivo da imposição das políticas de
austeridade era o de castigar o povo grego (e anunciar que se castigaria, com a
mesma força, qualquer outro país que não pagasse a dívida pública do seu
Estado, como poderia acontecer em Espanha), escolhendo as intervenções que mais
dano fariam às classes populares como, por exemplo, as pensões públicas,
justificando-o com o argumento de que estas pensões eram exuberantes, argumento
que foi, previsivelmente, promovido pelos maiores meios de informação […]. Na
realidade, só 14% dos pensionistas recebem mais de 1050 euros por mês. A grande
maioria recebe uma pensão abaixo de 665 euros, que é o limiar de pobreza
naquele país.
É importante assinalar que nem o governo anterior ao do
Syriza, nem as autoridades do FMI, do BCE, da Comissão Europeia ou dos governos
alemão e francês jamais exploraram a possibilidade de reduzir o gasto militar,
o que não deixa de ser surpreendente, pois a Grécia é o país que mais gasta com
as suas forças armadas, na EU-15, depois do Reino Unido. A causa deste silêncio
é fácil de ver. A França e a Alemanha eram os maiores fornecedores de
armamento, realizando negócios suculentos com a venda de armas ao Exército
grego, pagas com dívida pública. A Grécia tem 1.620 veículos blindados, um
número mais alto do que o da Alemanha, França e Itália juntas. E, na sua
maioria, comprados a estes países.
Foi o governo Syriza, não a Troika, quem propôs que se
cortasse na despesa militar e não na das pensões – outro dado também ignorado
pelos meios de informação. Na realidade, o governo Syriza foi o único que se
atreveu a enfrentar-se com o Exército, tentado que desapareçam as tensões entre
a Grécia e a Turquia, habilmente utilizadas pelas forças armadas para perpetuar
os seus interesses. Como era previsível, o governo dos EUA e a NATO ajudaram ao
rearmamento daquele país, pressionando, ao mesmo tempo,, para que a Grécia faça
cortes no seu Estado de Bem-estar, pensões incluídas.
A necessária
reestruturação da dívida
O quid da questão,
que não apareceu nas negociações até que o Syriza, o partido governante na
Grécia, o pôs em cima da mesa, foi a necessidade de reestruturar a dívida
pública grega, pois esta dívida não poderia pagar-se nas condições aprovadas
nas negociações entre a Troika e o governo grego anterior. Este tema era um
tema tabu no início das negociações, embora tenha sido aceite no final. As
instituições europeias e o FMI tinham plena consciência disso. Mas preferiam
ignorá-lo e continuar a explorar o povo grego, para recuperar algo do dinheiro
emprestado (com os respectivos juros).
O que os forçou a considerar a reestruturação da dívida foi
o que estava a acontecer na Grécia, assim como em Espanha e em Portugal. As
mobilizações populares de apoio ao governo Syriza (e que foram acompanhadas por
mobilizações ao longo do território da EU) contra a austeridade, assim como os
resultados das eleições municipais e autonómicas espanholas, alarmaram em
grande medida essas organizações, pois a vitória do Podemos e outros partidos
anti-austeridade, nas grandes cidades, preocupou-os grandemente (ver John
Palmer, “We Must Stand With Greece For The Sake of Europe, Social Europe Journal, 22.06.15). E, em Portugal, o Partido
Socialista, provável vencedor nas próximas eleições, prometeu anular todas as
políticas de austeridade. Hoje, aquilo a que se tem vindo a chamar a nova
esquerda está a expandir-se por todo o território europeu, uma nova esquerda
que está contra esta Europa, querendo substituí-la por outra diferente. E, a
actual está altamente preocupada. Daí a flexibilização da enorme rigidez que
tinha mostrado até agora.
Não é necessário dizer que o governo Syriza teve que ceder
em algumas exigências impostas pelo sistema financeiro e político, embora
menores do que se lhe pedia no começo das negociações. Mas, a vitória do
Syriza, a que se deve agradecer por ter iniciado a rebelião contra as medidas
de austeridade, significou resistir à maioria das medidas que queriam impor à
Grécia e levantar o problema da continuidade do pagamento da dívida pública nas
condições actuais, que são inaceitáveis.
Hoje, na Europa, pôs-se em marcha um movimento de protesto
contra as imposições do sistema financeiro e económico, que está a acontecer
também em Espanha, como mostrou o tsunami político ocorrido nas últimas eleições
municipais e autonómicas. Tudo isto mostra que, se as classes populares dos
países se mobilizarem, podem ir conquistando espaços de liberdade, democracia e
bem-estar que aquele sistema, através dos seus sistemas políticos, lhes têm ido
reduzindo durante todos estes anos. Como dizia o meu amigo Eduardo Galeano, “muita
gente pequena, em lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, pode mudar o mundo”.
Está a acontecer na Grécia e em Espanha, tendo-se iniciado um processo que,
neste país, começou em 15-M, o qual não podem parar. E se não acreditam,
esperem e verão.
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Texto original em Publico.es
* Catedrático de Ciências
Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi
Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona