A administração do grupo Controlinveste, proprietário do Diário de Notícias, depois de ter despedido 160 trabalhadores, dos quais 64 jornalistas, nomeou um novo director para o DN, que, certamente para agrado dos patrões, dispensou colunistas de opinião como Baptista Bastos e contratou outros, entre os quais um tal Miguel Angel Belloso, "jornalista" espanhol, que se diz de direita e "liberal", esquecendo-se de colocar os prefixos "extrema" e "neo", respectivamente. Não chegava a merda que o jornal já acoita nas suas páginas, do tipo César das Neves, foi preciso ir buscar uma mierda adicional.
Hoje, não pude evitar escrever, nas caixas de comentário on-line daquele jornal, umas considerações sobre o que este Belloso ali esparramou e que pode ser lido em http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4211571&seccao=Miguel Angel Belloso&page=-1)
O meu comentário dizia o seguinte:
"Durante o papado de João Paulo II e do seu inquisidor-mor Ratzinger, futuro Bento XVI, os sacerdotes que denunciavam a injustiça social e a repressão política foram perseguidos, uns excomungados pelo Vaticano e outros assassinados, como o jesuíta espanhol Ignacio Ellacuría, reitor da Universidade Centro-Americana de El Salvador, juntamente com outros 5 religiosos; Monsenhor Óscar Romero, abatido quando dizia missa num hospital de religiosas que cuidavam de doentes com cancro. Para o sr. Belloso, aqueles que condenam a exploração predadora do capitalismo são o diabo, aqueles que enriquecem à custa dos outros merecem a beatificação."
Não é de estranhar que estas verdades tenham sido censuradas, não pelos energúmenos que também pululam nas caixas de comentário do DN, mas pelo próprio jornal, visto o meu texto não ter aparecido, sequer, durante um segundo. E não é de estranhar, já que o DN está nas mãos de bancos e grandes interesses económicos, entre os quais uns angolanos, o BCP, o ex-BES e o genro de Cavaco Silva, Luís Montez.
A actual administração da Controlinveste, saída de uma nova arrumação de capitais do grupo, feita em Novembro de 2013, é liderada por Daniel Proença de Carvalho, o indivíduo com mais cargos no PSI-20 (as 20 maiores empresas portuguesas, cotadas em Bolsa) e o mais bem pago. Foi ele o intermediário dos angolanos na compra de parte da Controlinveste e, até ao rebentar do escândalo BES, era membro da comissão de remunerações daquele banco. Claro, é agora o advogado principal do gatuno e vigarista Ricardo Salgado.
Toda esta gente é quem manda no DN, no Jornal de Notícias, na rádio TSF, etc. Os mesmos ou outros são donos dos restantes grandes meios de informação. Como podem eles estar interessados em que se digam as verdades, como, por exemplo, que foi a mando de capitalistas selvagens como eles que os sacerdotes da Teologia da Libertação foram assassinados ou que foram eles que provocaram a actual crise financeira e que, em vez de estarem na prisão, conseguiram que os governos lhes dessem ainda mais dinheiro e impusessem a austeridade que está a matar pessoas (1) e a pouca democracia que existe?
Esta impunidade só é possível precisamente porque têm ao seu dispor os meios onde repetem, todos os dias e até à saciedade, que se deve salvar os bancos para que a economia não afunde (quando foram os bancos que a afundaram); que o aumento da dívida é o resultado do Estado gastador (apesar de, antes da crise, a dívida ser incomparavelmente menor) ou que andámos a viver acima das nossas possibilidades (quando são eles que enriquecem sugando o Estado, através de contratos de parceria público-privada, swap, fuga aos impostos, fraude fiscal, subsídios vários, sem contar os cerca de 7.000 milhões para o BPN e 12.000 milhões para os restantes bancos, a fim de continuarem a especulação financeira, porque nem um cêntimo está a ir para a economia real).
Isto é, estamos a ser governados por um conjunto de criminosos, através de uns lacaios chamados ministros, a quem eles pagam bem o trabalho mais sujo e visível.
(1) Vários estudos empíricos de David Stuckle e colaboradores calculam que por cada 80 euros cortados por pessoa a desempregados, reformados, famílias e crianças, a mortalidade geral aumenta quase 1% (0,99%), a mortalidade por tuberculose 4,3%, por doenças cardiovasculares 1,2%, por problemas relacionados com o álcool 2,8%. (Ver David Stuckle et al., The public health effect of economic crises and alternatice policy responses in Europe: Na empirical analysis, The Lancet, 2009)
O QUE ELES ESCONDEM
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Esses monstros chamados
bancos
Por Juan Torres López*
Os bancos privados
desfrutam de um privilégio extraordinário: sempre que concedem um crédito criam
dinheiro. Não moedas ou notas, que é o que as pessoas comuns julgam que é o
dinheiro, mas dinheiro bancário, isto é, meios de pagamento através das suas
contas.
Quando recebem os
depósitos dos seus clientes, os bancos não os mantêm totalmente em reserva para
fazer frente aos levantamentos que aqueles solicitem. Pelo contrário, conservam
em caixa apenas uma parte mínima e dispõem do resto para realizar empréstimos
(por isso se diz que é um sistema bancário de reserva fraccionária).
O fenómeno é fácil de
entender: Pôncio dispõe dos únicos 100 euros que economizou e deposita-os num
banco. Com o seu cartão de débito ou o livro de cheques pode fazer pagamentos
no valor de 100 euros. Se o banco concede um crédito de 20 euros a Pilatos,
mediante uma simples anotação contabilística, este poderá gastar aqueles 20
euros, de modo que, a partir desse mesmo instante, já há 120 euros em meios de
pagamento. O banco criou 20 euros de dinheiro bancário.
Como isto se faz
sucessivamente e sem descanso, acontece que os bancos “multiplicam” sem cessar
os meios de pagamento, na mesma medida em que vão criando mais dívida. Como
dizia o Prémio Nobel da Economia Maurice Allais, isso significa que os bancos
criam dinheiro ex nihilo,
a partir do nada.
Na Europa, a proporção
dos depósitos que, hoje em dia, os bancos são obrigados a manter em reserva é a
de 1%, no caso de se tratar de depósitos a menos de dois anos ou que se possam levantar
sem pré-aviso, e de 0% nos restantes. Isto implica que, se supusermos que os
clientes não retêm dinheiro nas suas mãos (o que hoje em dia sucede quase
sempre, graças aos cartões), um banco pode criar do nada 100 euros sempre que
um cliente deposite nesse banco 1 euro, a prazo de menos de dois anos, e tanto
quanto quiser, nos restantes casos.
Este é o negócio que dá
lucros à banca: criar dinheiro do nada, gerando dívida sem cessar.
Logicamente, os bancos
não deixaram nunca de aproveitar essa oportunidade e dedicaram-se a impor as
condições que obrigam as empresas, famílias ou governos a endividarem-se
continuamente, fomentando, por exemplo, a compra da habitação em vez do
arrendamento, cortando salários, permitindo créditos hipotecários acima do
valor da casa, subindo artificialmente o preço da habitação, desagravando
fiscalmente os juros de maneira a ser mais rentável endividar-se do que
autofinanciar-se, etc.
Esta, e não outra, é a
causa de que a dívida cresça constantemente. E também de que os bancos, volta e
meia, tenham crises, já que criar dívida desta forma faz com que o valor dos
seus créditos se afaste constantemente do dos seus depósitos e do seu capital em geral.
Em Junho passado, foram
publicados os últimos dados anuais que permitem comprovar a relação entre o
capital e os activos dos 50 maiores bancos do mundo. Embora não seja exatamente
entre depósitos e créditos, a relação reflecte perfeitamente como tem crescido
o negócio bancário e a razão da sua permanente instabilidade.
Esses 50 megabancos têm,
no total, um capital de 772.357 milhões de dólares, enquanto os seus activos
têm um valor 87,6 vezes maior (67,64 biliões de dólares). Mas, há casos
verdadeiramente impressionantes. O recorde pertence ao Wells Fargo Bank dos Estados
Unidos, que tem ativos no valor de 2.646,6 vezes maior do que o seu capital.
LesiguenCitibank, com uma relação de 1.793,3 para um e o ING, que tem 1.550,3
dólares em ativos para cada dólar de capital. No ranking encontram-se o Banco de Santander, no 15º lugar e com uma
relação de 196,9 dólares em activos por cada dólar de capital, e o BBVA, em 35º
lugar e com uma relação muito mais baixa, de 20,5 para um (a lista completa
pode ver-se no Bankers Almanac).
O sistema de reserva
fracionária dá origem a estes monstros financeiros que assentam em nada, sendo
materialmente impossível que se mantenham em pé, sem caírem em algum momento. A
história demonstrou-o dúzias de vezes.
Mas embora o sistema
seja perigosíssimo, a banca adquiriu, graças a ele, um poder político imenso,
diabólico, que se estende a todos os resquícios da sociedade e que lhe permite
obrigar a que sejam os cidadãos a arcar com os custos multimilionários que gera,
cada vez que cai.
Vivemos, pois, num
sistema que permite que a utilização de um elemento essencial para criar
riqueza, emprego e satisfação humana como é o dinheiro, que está para a
economia como o sangue está para o corpo humano, dependa exclusivamente da
vontade de um grupo social privilegiado. E que, além disso, o utiliza da forma
mais esbanjadora e onerosa, criando uma dívida crescente que asfixia a vida
económica.
Veja-se como se vir, não
há outra alternativa senão acabar com o sistema de reserva fraccionária e
considerar o crédito como um serviço público essencial, obrigando a banca, seja
ela privada ou pública, a governá-lo, inapelavelmente, à luz desse princípio.
Isto não só permitiria evitar o inferno criado por cada crise, que o sistema
bancário actual recorrentemente provoca, mas também utilizar o dinheiro, que é
um bem comum, para financiar convenientemente empresas e consumidores, e que os
juros (que poderiam ser mínimos ou utilizados apenas como instrumento de
estabilização) revertessem para o Estado, aliviando uma parte imensa da actual
carga fiscal.
[*] Catedrático na
Universidade de Sevilha, no Departamento de Teoria Económica e Economia
Política.
Original do texto em http://juantorreslopez.com/impertinencias/esos-monstruos-llamados-bancos/
sábado, 18 de outubro de 2014
AS CAUSAS ECONÓMICAS E POLÍTICAS DA EPIDEMIA DE ÉBOLA
Por Vicenç Navarro *
O Centro para o Controle de Doenças (CDC, Center for Disease
Control) do governo federal dos EUA, um dos centros de maior prestígio e
reconhecimento internacional, pertencente ao Serviço de Saúde Pública (U.S.
Public Health Service) do dito governo, publicou, no mês passado, um relatório
sobre a epidemia criada pelo vírus do Ébola, onde se dizia que “os casos de
Ébola poderiam expandir-se numa quantidade que podia variar de 550.000 casos a
1,4 milhões, nos primeiros quatro meses”. O mesmo relatório pôs em causa os
números proporcionados pela Organização Mundial de Saúde (OMS, a agência de
saúde das Nações Unidas) sobre o número de casos da doença causada pelo vírus
do Ébola (5.800 casos) e o número de mortos (2.800 casos). O CDC dizia que,
provavelmente, os números serão muito maiores, à roda de 20.000 casos de
infectados com a doença. E sublinhava que era provável que o número de novos
casos de infectados e de mortos aumentasse exponencialmente, passando de
centenas a milhares por semana. O CDC indicava, também, que, hoje, a epidemia
se centra em três países da África Ocidental, Libéria, Serra Leoa e Guiné, onde
as infraestruturas de higiene, saúde pública e serviços sanitários são muito
deficientes, tendo piorado nos últimos anos, em consequência das políticas de
austeridade da despesa pública, incluindo a despesa pública com a saúde,
impostas a estes governos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco
Mundial, instituições conhecidas pelas
suas políticas de “ajuda ao desenvolvimento”, que se centram, entre outras
medidas, na redução da despesa pública para reduzir o défice e a dívida públicos.
Estas políticas de austeridade, que estão a ter um impacto muito negativo no
bem-estar da população, nos países da Eurozona, têm um impacto devastador na
saúde e qualidade de vida das populações africanas expostas a tais políticas.
Como e onde se iniciou a epidemia de Ébola
A epidemia actual iniciou-se na Guiné, em finais de 2013.
Porém, não foi notícia até Março do ano seguinte, 2014. É uma das infecções
mais mortais que se conhecem. Quer dizer, a mortalidade entre os enfermos de
Ébola é muito maior do que é costume acontecer com outras doenças infecciosas.
O vírus do Ébola, os seus efeitos e como poderia curar-se está menos
desenvolvido e conhecido que outros vírus causadores de outras doenças mais
conhecidas nos países mais desenvolvidos economicamente. Como indicava um
artigo na revista International Journal
of Infections Diseases, “este vírus é dos que se conhecem menos da família de
vírus a que pertence. Há uma grande ignorância sobre este vírus…” E isto
acontece apesar da existência e elevada letalidade do vírus ser muito
acentuada.
O primeiro caso que se conhece do Ébola, segundo o CDC, foi
detectado no antigo Zaire, no ano de 1976, onde se iniciou a sua transmissão,
como consequência das condições muito pouco higiénicas dos serviços
hospitalares daquele país, com a utilização de seringas pobremente
esterilizadas. Um novo surto registou-se no Sudão, em 1979, com 34 infectados e
22 mortos. E, mais tarde, houve outro, de novo, no Zaire. O escasso
conhecimento do comportamento e natureza do vírus explica que não se tenha
elaborado fármacos que possam curar a doença, situação muito comum em doenças
que existem com muito maior frequência nos países chamados pobres. A indústria
farmacêutica não presta atenção a doenças e doentes que não são rentáveis.
Existem muitos casos como este. E a bem conhecida insensibilidade dos Estados
dos países ricos relativamente ao bem-estar das populações dos países chamados
pobres explica a escassa atenção a este tipo de doenças, ao considerarem,
erradamente, que não os afectará. A SIDA demonstrou, contudo, o erro deste
pressuposto. Mas, a esta insensibilidade há que juntar a sua considerável
responsabilidade na existência e permanência da pobreza nestes países. É aí que
está o cerne da questão, o que raramente aparece nos maiores meios de
informação.
As causas políticas e económicas da epidemia do Ébola
A maioria das economias destes países africanos está, em
grande parte, nas mãos de grupos financeiros e económicos que obtêm a sua
riqueza destes países, sem que esta riqueza seja canalizada para o resto da
população. O total da população que vive nestes países (Libéria, Serra Leoa e
Guiné) é aproximadamente de 20 milhões de pessoas. O seu principal meio de
produção é a terra, constituindo os produtos minerais e agrícolas a sua maior
riqueza, a qual, contudo, está principalmente em mãos de proprietários de
empresas transnacionais (também conhecidas, erradamente, como multinacionais)
que extraem a dita riqueza sem que, com isso, a população enriqueça. Os lucros
vão para o país sede dessas transnacionais. Aqueles países não são, portanto,
países pobres, pois têm muitos produtos enormemente valiosos. Em contrapartida,
a grande maioria da população que trabalha no campo vive em condições
misérrimas (ver Tariq Ali and Allyson Pollok, “The Origins of Ebola Crisis”,
CounterPunch, 12.10.14, e também Horace G. Campbell, “Ebola, the African Union
and Bioeconomic Warfare”, CounterPunch, 12.10.14). Em quase nenhuma das
informações sobre o Ébola, aparecidas na maioria dos meios de informação, se
falou das causas profundas da epidemia de Ébola nestes países, sendo a primeira
a enorme miséria da grande maioria da população, resultado da aliança entre as
elites governantes destes países, por um lado, e os interesses económicos e
financeiros que controlam as suas economias, por outro. E, todas as vezes que
há mobilizações políticas para acabar com tais estruturas, os governos dos
países ricos (sumamente influenciados por aquelas transnacionais) enviam tropas
ou ajuda militar para que o sistema de poder permaneça intacto. É esta, repito,
a realidade que explica a pobreza dos países erroneamente chamados pobres
(veja-se o meu livro Imperialism, Health
and Medicine, Baywood, 1981).
A enorme pobreza explica a segunda causa do aparecimento
desta epidemia maciça: a pobreza da infraestrutura dos serviços sanitários, de
saneamento e de saúde pública. Estes países têm uma estrutura de salubridade e
sanitária muito insuficiente, estrutura que se tem debilitado dramaticamente
como consequência das políticas neoliberais do FMI, impostas à maioria dos
países africanos, incluindo estes três (Libéria, Serra Leoa e Guiné). Tais
políticas têm um impacto desastroso nesses países, cujos gastos públicos com a
saúde por habitante são, juntamente com os do Bangladeche e Haiti, os mais
baixos do mundo. E, inclusivamente, estão a reduzir-se mais, como consequência
das políticas de austeridade (com os cortes na despesa pública social,
incluindo a saúde), impostas pelo FMI, para a redução da dívida pública, e isto
como condição para que possam receber dinheiro emprestado para estimular a
economia (veja-se os artigos no International Journal of Health Services,
volumes 39 e 40, anos 2009 e 2010, sobre o impacto do FMI na saúde dos países
pobres).
Estas políticas neoliberais do FMI, que estão a causar o
enorme empobrecimento do sector público, incluindo as infraestruturas de
saneamento e sanitárias públicas, têm um impacto muito negativo nos países mais
desenvolvidos economicamente (o serviço de doenças infecto-contagiosas, do
Hospital Carlos III, em Madrid, onde agora está internada a enfermeira
contagiada com o Ébola, tinha sido encerrado, como consequência dos cortes na
despesa pública, resultado das políticas de austeridade da Comunidade de Madrid
e do governo Rajoy), e têm também um impacto, repito, devastador nos países
erradamente chamados pobres (como a Libéria, Serra Leoa e Guiné).
É, igualmente, importante sublinhar que, nestes países, tal
como acontece em Espanha, os serviços de saúde estão altamente estratificados
por classe social, com uma medicina privada para as classes ricas (dependentes
dos interesses transnacionais), que controlam a vida política e mediática do
país. A pobreza da despesa pública estimulou o enorme crescimento da
privatização, que contribui para a pobreza do sistema público. Hoje, em Espanha,
estamos a ver o debilitamento das grandes unidades de saúde, à custa da
expansão da medicina privada. Esta situação repete-se nos países africanos, com
resultados catastróficos. À enorme pobreza da grande maioria da população,
junta-se a enorme insuficiência da sua infraestrutura sanitária e de
saneamento. Na realidade, o que acontece nos países erradamente chamados pobres
é muito semelhante ao que acontece nos países “ricos”, embora os resultados
sejam imensamente piores, devido à enorme pobreza naqueles países. Hoje, na
Libéria, Serra Leoa e Guiné, os doentes com Ébola são recusados nos hospitais e
morrem na rua, em plena luz do dia.
A resposta à crise actual
A resposta à crise naqueles países africanos foi,
previsivelmente, muito lenta. E quando teve lugar, pediu-se urgentemente
recursos humanos e dinheiro. Só para a Serra Leoa, o governo pediu 1.000
médicos e 3.000 enfermeiros. E a OMS indicou que são necessárias 4.300 camas de
hospital, para tratar todos os doentes com Ébola, nestes três países (Libéria,
Serra Leoa e Guiné), mais de dez vezes o número total de camas existentes
nestes países. Os primeiros países a responder foram Cuba e China (Cuba, por
certo, foi sempre exemplar na sua resposta aos pedidos de ajuda, tal como
sublinhou, a seu tempo, o Presidente Mandela da África do Sul). Cuba foi o
primeiro país que respondeu, enviando imediatamente 165 médicos e
profissionais, ajuda especialmente valiosa, pois Cuba, apesar da sua pobreza
económica, tem um dos programas mais avançados do mundo contra doenças
infecciosas, como reconheceram, não só a OMS, mas também a Associação Americana
de Saúde Pública, APHA. A China enviou 200 profissionais de saúde e, por fim, o
governo Obama enviará 3.000.
Esta ajuda em pessoal é de uma grande urgência. Mas, dita
ajuda será paliativa e não resolutiva, a não ser que haja mudanças maciças
dirigidas a atacar as causas da epidemia de Ébola a que me referi neste artigo,
a saber: a miséria da população que vive e trabalha nestes países e a grande
insuficiência das suas infraestruturas de salubridade, de saneamento e
sanitárias. A não ser que isto ocorra, as epidemias de Ébola ir-se-ão
repetindo.
É evidente que tais epidemias podem controlar-se e assim
está a acontecer inclusive nos países vizinhos dos três mais afectados
(Libéria, Serra Leoa e Guiné). A Nigéria e o Senegal, por exemplo, parecem ter
contido a epidemia. O Ébola é muito letal. Mas, não é muito contagioso. Na
realidade, é das menos contagiosas de entre as doenças virais. E é muito pouco
provável que, como ocorreu com a SIDA, se expanda nos países ricos. Isto
poderia suceder, mas a infraestrutura sanitária dos países desenvolvidos é
suficientemente avançada para poder controlar a difusão da doença. Mas, este
pressuposto tão-pouco é definitivo, pois o desmantelamento dos serviços
públicos de saúde a que estamos a assistir, inclusive na EU (muito visível em
Espanha), pode diluir e debilitar esta garantia, de forma alarmante, como
aconteceu em Espanha.
O neoliberalismo foi a causa desta possibilidade, tanto nos
países da Africa Ocidental, como nos do sul da Europa.
______
*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na
Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada,
na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The
Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos.
Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela
Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University.
Nota do tradutor:
Algumas riquezas da
Libéria: principal produtor mundial de borracha, além de exportador de
diamantes e ouro. Ocupa o 174º lugar, num total de 187 países, no Índice do
Desenvolvimento Humano (IDH) em 2012, do relatório das Nações Unidas, publicado
em 2013.
Algumas riquezas da Serra
Leoa: diamantes; um dos maiores exportadores de titânio e de Bauxita; 3º
maior porto natural do planeta. 177º lugar no IDH. (O filme do realizador
Edward Zwick, “Diamante de Sangue” retrata bem como se transforma um país
riquíssimo, a Serra Leoa, num dos mais pobres do mundo).
Algumas riquezas da Guiné-Conacri:
grandes reservas de ferro e um terço das reservas mundiais de bauxita; grandes
depósitos de diamantes e ouro; quantidades ainda indeterminadas de urânio; terra,
água e condições climáticas excepcionais para a agricultura e pesca. 178º lugar
no IDH.
Algumas riquezas da República
Democrática do Congo, antigo Zaire: de todas as reservas mundiais, possuiu 34%
de cobalto, 10% de cobre, ouro, urânio e petróleo, 50% de coltan (componente
essencial de computadores e telemóveis); cotas relevantes de diamantes,
cassiterita e nióbio; maiores recursos hídricos de toda a África. 90% da
população não tem acesso à electricidade. O orçamento deste país é apenas um
pouco maior do que o montante anual das despesas operacionais das 2.700 pessoas
empregadas no FMI, organização que obriga este país a entregar 50% das suas
receitas para o serviço da dívida. 186º lugar no IDH.
Se não houvesse esta pilhagem de recursos, não haveria
epidemias de Ébola, nem tão-pouco uma emigração maciça e as consequentes mortes
no Mediterrâneo.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
Campeão das rotundas, Portugal vai
passar a ser o país dos pelourinhos
11-10-2014
Por
Óscar Mascarenhas [*]
Havendo males que vêm por bem, o desvario que esvurma
dos atuais governantes e seus valetes vai recolocar, aos jornalistas, a
necessidade de traçarem uma agenda própria, tão submissa e cordata tem sido a
imprensa, com a exceção honrosa de raras teimosias de insubmissão.
Quando refiro os atuais governantes, não me cinjo nem
ao tempo nem ao espaço; outros virão tão alvares como os que ainda se mantêm
com unhas, dentes e gavinhas no santuário blindado da sua incapacidade - e o
mesmo se passa por essa desencantada Europa fora. Os de cá não são
intelectualmente medíocres, culturalmente vazios e civicamente vadios por não
terem conseguido acompanhar os congéneres europeus. Nada: estudaram todos pelos
mesmos manuais em formato tabloide, fascículos diários de Metafísica dos
Costumes e Filosofia do Direito que cá pelo burgo vêm garridamente capeados de
Correio da Manhã e O Crime.
E como entram nisto os jornalistas que honram a
profissão? Não entram. Distanciam-se e denunciam. Como se apresentava uma
corajosa coleção de livros - o mais deles proibidos e retirados do mercado -
"quando a desordem se torna ordem, uma atitude se impõe: afrontamento".
Era esse o nome da editora, é essa a consigna dos tempos de que nos
envergonhamos.
Tudo às avessas: o que deveria estar ao acesso do
público ou de setores da população é-lhes negado; e aquilo que deveria ser
retirado da esfera pública, porque é privado ou íntimo, é colocado à disposição
da curiosidade mórbida ou pérfida. Compete aos jornalistas revelar o que se
esconde e publicar o que deveria ser exposto.
Os jornalistas já deixaram sem explicação e denúncia
como é que Portugal se transformou no campeão das rotundas - e quanto alcatrão
ficou agarrado a certos dedos, para serem limpos com muitas notas. Agora, ficam
prevenidos e atentos aos pelourinhos onde vão ser expostos, à medieval, os
condenados sem julgamento, sentenciados por leis de um poder apostado em gerar
uma sociedade histérica e tabloide - com o pretexto de "também se faz lá
fora", nessa vergonhosa sociedade tribal de vizinhos que se invadem e se
chacinam uns aos outros na dita Europa.
Dois exemplos do que deveria ser conhecido e é
sonegado: o ministro Nuno de Santo Estaline Crato - pode esquecer-se a
matemática, mas o estalinismo inoculado na madrassa éme-éle é mais indelével do
que uma tatuagem perante o laser e o seu sintoma são as unhas enterrarem-se na
cadeira que se abarbata à custa de muita casaca virada e muita mesura - não
publica as listas de colocações de professores. Estão nas escolas, diz o
comissário contra o povo. Pois. Os professores concorreram a nível nacional
mas, para saberem se houve batota ou simples erro, têm de ir a centenas de
escolas e investigar por sua conta. Segredo de Estado! Deve ser "como se
faz lá fora"...
O primeiro-ministro diz que não faz striptease da sua
conta bancária. Certo. Mas, acho eu, ninguém quer saber se gastou o dinheiro
que recebeu a comprar slips fio dental, lantejoulas, plumas ou varões para se
despir langorosamente na intimidade aos requebros de um kuduro. A única coisa a
mostrar é a lista do que recebeu, já que, exercendo cargos públicos, a coluna
do que entrou na sua conta bancária deveria ser mostrada - e eu sempre defendi
que essa declaração fosse reservada e não enchesse a gorja dos tabloides para
fazerem o top ten dos mais ricos, pondo em risco a segurança dos filhos e
familiares, por se tornarem um chamariz para os raptores. Mas a lei é imbecil, feita
por políticos imbecis e conluiados com o tabloidismo - aquelas cabeças não dão
para mais, coitadas - e que fazem vida de se queixarem dos tabloides que os
cercam. Deve ser "como se faz lá fora"...
A ministra da Justiça é caso perdido. Acha que as visitas
aos tribunais são sua "agenda privada", de que se recusa dar conta e
permite-se interpelar um deputado com "o que é que o senhor fez pelo
país?", ignorando que é o deputado quem lhe pede contas e não ao
contrário.
Nem sequer percebe o que legisla ou o que quer
legislar. É uma "Maria vai com o que se faz lá fora e, para dares um toque
de sal à portuguesa, mete uma bojarda tua, que fica bem". Tem a ver com as
listas dos que cumpriram a pena por pedofilia. "Lá fora" acha-se
legítimo um patrão conhecer o passado penitenciado de um candidato ao emprego e
recusá-lo por tais ou outros antecedentes. A ministra acrescenta uma
"prevenção": os pais dos jovens com menos de 16 anos também têm o
direito a conhecer. Não podem revelar o que sabem - num país em que o segredo
de justiça é cumprido quando os reis fazem anos bissextos! Como a senhora, que
se cultivou no confronto dos Irmãos Metralha com o Tio Patinhas, cuja leitura
não lhe dava cãibras nos beiços, não consegue imaginar pais de crianças que as
lançaram no negócio do sexo a troco de dinheiro. Agora a criativa governante
quer dar rédea solta à chantagem. Uma coisa é a polícia ter a lista dos
"suspeitos do costume" - o que já é dissuasor quanto possível numa
sociedade em que os fins não justificam todos os meios - e outra é cortar a
possibilidade de regeneração de quem cumpriu pena, estigmatizando-o
publicamente. Deve ser "como se faz lá fora" - e se fez mesmo, com
estrela cosida no casaco...
Agora assoma da casca o chefe da ASAE, que nunca se
notabilizou por apanhar bancos agiotas e lavadores de dinheiro (está nas suas
competências legais), mas que já entalou muita leitaria de bairro. Quer fazer
uma lista negra de estabelecimentos detetados em incumprimento, autuados e
obrigados a corrigir as carências. Disse o cavalheiro ao DN: "Era uma
maneira de devolver (?) ao operador económico um estímulo pela negativa no
sentido de querer sair da lista e, portanto, introduzir alterações." Não
basta a contraordenação, que vai até ao encerramento; é preciso colocar no
pelourinho da má fama a leitaria onde a colher de pau foi utilizada para mexer
a sopa e a caldeirada. Deve ser "como se faz lá fora".
[*]Provedor do leitor do Diário de Notícias
Texto publicado em http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4173773&seccao=%D3scar Mascarenhas
terça-feira, 14 de outubro de 2014
As desigualdades de
vida e morte
Por Vicenç Navarro*
Uma das situações mais preocupantes que estão, hoje, a
acontecer no mundo é a existência de grandes desigualdades em indicadores
sociais tão importantes como os anos de vida e a idade de morte das pessoas
pertencentes a distintos países e a diferentes classes sociais dentro de cada
país. A disparidade na esperança de vida (isto é, os anos que se calcula que
uma pessoa viverá) entre países pobres e países ricos é conhecida e merece
atenção mediática. O facto de que um cidadão da Serra Leoa, em África, viva em
média 27 anos menos que uma pessoa no Japão é um dado importante, mobilizador
da comunidade internacional que se considera sensível aos direitos humanos,
entre os quais o direito à vida é um dos centrais (ver Therborn, G., The Killing Fields of Inequality, Polity
Press, 2013). Mas, o que se conhece e reconhece menos são as enormes diferenças
existentes na esperança de vida dentro dos países, tanto ricos como pobres,
diferenças que, em ocasiões, são inclusive maiores que as existentes entre
países ricos e países pobres. Assim, segundo Therborn, em estudos
epidemiológicos levados a cabo com grande rigor na cidade escocesa de Glasgow,
verificou-se que a diferença da média de anos de vida entre os bairros mais
pobres e os mais ricos daquela cidade industrial da Escócia é de 28 anos, um
número maior que a diferença existente entre o Japão e Serra Leoa.
Inclusivamente, na Suécia, um dos países com menos desigualdades sociais da
União Europeia dos Quinze (EU-15), a diferença da média de anos de vida entre
os bairros ricos e os pobres é maior que a existente entre a Suécia (país rico)
e o Egipto (país pobre). Em Espanha, tais diferenças de esperança de vida
também se dão. Uma pessoa que vive no bairro rico de Sant Gervasi, na cidade de
Barcelona, vive oito anos mais que uma pessoa que vive num bairro operário,
como o Raval, na mesma cidade.
E esta diferença – como também escreve Therborn – tem estado
a aumentar, em parte como consequência de que, em geral, a população mais rica
tem vindo a viver mais anos. Mas, esta não é a única causa. Em muitos países,
outra causa é a de que os anos de vida das classes menos ricas têm-se reduzido,
o que tem pouca visibilidade mediática. Na realidade, o crescimento tão maciço
do desemprego, que está a ter lugar na Europa, (e que adquire a sua máxima
expressão nos países do sul da Europa, como Espanha) tem um impacto negativo
nos anos de vida da população, primordial mas não exclusivo entre sectores da
população como a inactiva e a desempregada. Isto está a ocorrer inclusive em
alguns países escandinavos do norte da Europa, como a Finlândia. Na realidade,
calculou-se que, como consequência da crise actual, houve na Europa um aumento
de 8.000 suicídios (desde o início da crise de 2007 a 2010). Assim,
extrapolando estes dados para o período de 2015-2019, calculou-se que, somando
outras causas de morte além do suicídio, haverá um aumento da mortalidade de
mais de 235.000 mortes, e isso como consequência da continuação da crise, a mesma
crise que, calcula-se provocará um aumento de 9,5 milhões de desempregados
durante o mesmo período.
Por que razão isto ocorre?
Não é necessário dizer que tem havido muitos trabalhos
científicos orientados para a análise do porquê da taxa de variação da
mortalidade segundo a localização da população na escala social (isto é,
segundo a classe social à qual as pessoas pertencem). A grande maioria dos
estudos centrou-se nas diferenças de comportamento que existem entre classes
sociais, em hábitos de vida tais como fumar, a dieta, o exercício físico e
outros factores considerados, com razão, variáveis importantes para explicar a
esperança de vida de um indivíduo. Mas, o que é muito mais importante e muito
menos conhecido é que estes factores, embora importantes, são dramaticamente
insuficientes para explicar as diferenças de esperança de vida que existem na
população. Na realidade, quando se compara a esperança de vida da população que
tem os mesmos hábitos (isto é, que come igual, que fuma igualmente, que faz o
mesmo exercício e outros factores que influenciam os anos de vida de uma
pessoa), agrupando as pessoas pela sua classe social, vê-se que a taxa de
variação da mortalidade, por classe social, continua. A influência dos hábitos
de uma pessoa para explicar os seus anos de vida é menor do que a que tem a sua
posição na escala social. E visto que a grande maioria da população morre na
mesma classe social em que nasceu, a variável mais importante para explicar a
esperança de vida é a classe social na qual o indivíduo nasce e à qual
pertence.
Isto explica que se tenham feito estudos para averiguar o
que há nesta situação que explique a mortalidade diferencial por classe social.
E é arrasadora a evidência existente de que uma das variáveis mais importantes
para explicar diferentes médias de anos de vida está na sensação de controle e
satisfação que a pessoa tem sobre os elementos chave da sua vida, tal como o
trabalho que exerce. A possibilidade de criatividade que esse trabalho permite,
o sentimento de se ser tratado justa ou injustamente, a ajuda e apoio, assim
como a segurança laboral e protecção social que se recebe, são factores mais
importantes para explicar a esperança de vida do que os hábitos que as pessoas
têm.
Esta evidência existe desde há anos. Já nos anos 70, nos
EUA, estudos dos centros de investigação sanitária mais importantes do país (os
famosos NIH) mostraram que a variável mais importante para explicar a esperança
de vida das pessoas (acima dos 65 anos) era a satisfação que tinham tido com o
trabalho que fizeram ao longo da sua vida.
Apesar da evidência acumulada durante todos estes anos,
pouco se fez a este respeito, nos dois lados do Atlântico Norte. E a razão para
explicar esta escassa atenção é a de que as políticas públicas que se requerem
para aumentar a esperança de vida passam, não só por mudanças nos hábitos de
consumo e estilo de vida, mas também por mudanças nas relações de poder,
baseadas mais no mundo do trabalho e da produção do que na área do consumo. São
soluções que requerem respostas colectivas, mais que individuais, e que afectam
as coordenadas de poder existentes num país. Para os stablishments financeiros e económicos (que têm uma enorme
influência política e mediática) é mais fácil e menos conflitivo dizer ao
cidadão que tem de deixar de fumar do que ter que alterar as relações de poder
no mundo da produção (ao que, claramente, se oporão tais stablishements). Dizer-lhe que tem que se organizar e mobilizar-se
para conseguir mais poder na sociedade, mudando, por exemplo, a natureza do
trabalho, para que este se converta num instrumento de prazer e criatividade,
em vez de instrumento para permitir a optimização dos interesses dos que
controlam o trabalho, é outra conversa. Daí que se dê muito mais prioridade a
campanhas anti-tabagismo (que são úteis e necessárias) do que a intervenções
públicas direccionadas a reduzir as desigualdades baseadas na pertença social
das pessoas e na natureza do seu trabalho, além do seu consumo (que são
inclusive mais importantes) E isto apesar de que, como documentaram Joan
Benach, Carme Borrell, Carles Muntaner, Montse Bergara e outros investigadores
espanhóis, conseguir que as pessoas com rendimentos inferiores tivessem as
mesmas taxas de mortalidade que as pessoas com rendimentos superiores
permitiria salvar mais vidas do que se se conseguisse que toda a gente deixasse
de fumar. Em ciência, há temas mais prioritários que outros, devido às relações
de poder (incluídas as de classe social, além das de género) existentes num
país.
*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na
Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada,
na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The
Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos.
Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela
Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University.
Texto original em http://www.vnavarro.org/?p=11194 domingo, 12 de outubro de 2014
O caso PT ou por que se destrói a riqueza de um país
"Durante décadas a
maior empresa portuguesa, e a primeira de dimensão internacional, a PT, era,
também, a companhia que mais investia em tecnologia e investigação no nosso
país", lembra Mariana Mortágua numa intervenção, no Parlamento.
Nunca é de
mais fazer um exercício de memória para saber, exactamente, quem são os
principais culpados da situação a que chegou a Portugal Telecom, ao darem
liberdade aos administradores, através da privatização, para todo o tipo de
negociatas e especulação financeira, com o nosso dinheiro.
Assim,
temos, em 1 de Junho de 1995, a 1ª fase da privatização, ou primeira
machadada nesta empresa pública, com Cavaco a alienar 27,26% do seu
capital. Fê-lo a 4 meses das eleições, com os socialistas já perfilados na
sucessão do poder. Terá sido receio de que o seu substituto, o socialista
Guterres, honrando o nome do seu partido, recusasse privatizar uma
empresa estratégica para a soberania nacional, com bons lucros, que
revertiam para o Estado, isto é, socializados e não arrecadados
apenas por alguns? Se sim, enganou-se, visto ter sido o dito socialista
que mais privatizações fez, PT incluída.
O governo de
Guterres (1995-2002), de quem António Costa foi duas vezes Ministro (é também
bom não esquecer), foi quem procedeu à privatização quase total da PT: 21,74%
do capital, em 1996, quase 26%, em 1997, 13,5%, em 1999 e o resto em 2000,
ficando, por fim, o Estado com apenas 500 acções em golden share, isto é, com
direitos preferenciais sobre as decisões da empresa. António Costa chamará a
isto uma privatização inteligente, como, agora, propõe aplicar uma
"austeridade inteligente". Isto é, um socialismo que, depois de ter
sido metido na gaveta por Mário Soares, abre portas e janelas (as tais, das
oportunidades) aos buldózeres da destruição completa dos bens públicos.
Os
actuais vendedores do país não tiveram que se esforçar muito para pôr fim
a essa golden share, tendo sido uma das primeiras acções
destruidoras, assim que tomaram posse (Conselho de Ministros de Julho de 2011).
Se se pedir
responsabilidades a uns e a outros, responderão, vivaços, ou com ar sorna,
que se limitaram a cumprir as exigências de Bruxelas, entre as quais, como
Burroso nos ensinou lá do alto, da Comissão Europeia - a "concorrência
livre e não falseada". Não dirão que foram eles quem concordou
com os tratados que prevêem o desmantelamento e privatização das empresas
públicas lucrativas, assinando e apoiando todos os tratados europeus que
contemplam esta traição ao país. O Tratado de Lisboa, assinado com pompa e
circunstância por Guterres (de quem António Costa foi duas vezes Ministro, é
útil não esquecer) foi o penúltimo capítulo e capitulação de Portugal como país
independente. O último está no Tratado Orçamental, aprovado à sorrelfa, no
Parlamento português, pela maioria de direita, isto é, PS+PSD+CDS.
Resta dizer que,
dos países sob ocupação da Troika (Comissão Europeia, presidida pelo patriota
Burroso, comprador de submarinos à Alemanha, Banco Central Europeu, presidido
por um alto funcionário do banco privado Goldman Sachs, protagonista da trafulhice
nas contas públicas da Grécia, e FMI, presidido por uma ex-ministra francesa a
contas com a justiça por corrupção e desvio de fundos públicos), Portugal
evidencia-se como o melhor sabujo deste bando de delinquentes. A Irlanda e a
Grécia, depois de a Troika ter obrigado a privatizar algumas empresas, fizeram
questão de guardar, nessas empresas, uma golden share. Ex.: A Public Power
Company grega.
Mas, para
vermos com mais clareza como a “construção europeia” tem sido feita para
destruir as economias dos países periféricos, como Portugal, e pô-los sob o
domínio da Alemanha e seus aliados, falta saber que esses países não
privatizaram, total ou parcialmente, segundo os casos, os CTT, por exemplo, e
detêm uma participação considerável em empresas estratégicas para as
respectivas economias. Ex.: Volkswagen, Renault.
É assim que,
agora, depois de totalmente privatizada e desvalorizada, os restos da Portugal
Telecom irão parar a mãos francesas (segundo tudo indica, pois o especialista
em venda do país a retalho, Paulo Portas, já recebeu os interessados, no seu gabinete de
ministro), isto é, quem der mais e melhores luvas ao vendedor
e intermediários.
Vêm, depois,
dizer-nos que não há dinheiro. Pois não há, nem pode haver, se o que dá lucro nos
é roubado, obrigando o Estado a endividar-se num crescendo, com emissão de
títulos de dívida para pagar apenas juros. Mas é este o objectivo de quem manda
na União Europeia e dos seus lacaios nacionais: acorrentarem-nos a uma dívida
para todo o sempre.
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
Portugal Telecom – como se afunda uma empresa
Querem
saber como se destrói uma empresa? Perguntem a Zeinal Bava e a Henrique
Granadeiro. O que teve lugar na Portugal Telecom, nos últimos anos, devia ser
compilado e dar origem a um manual de instruções para afundar empresas.
8 de
Outubro, 2014
Mariana Mortágua[*]
Zeinal Bava pode dizer que sai
pelo seu pé, mas deixa atrás de si os cacos do que foi a mais prestigiada
empresa nacional.
Durante décadas a maior
empresa portuguesa, e a primeira de dimensão internacional, a PT, era também a
companhia que mais investia em tecnologia e investigação no nosso país. Era,
digo. Porque é este o legado de Bava à frente da empresa que o Estado
privatizou: todas as notícias positivas sobre a PT estão no passado.
A PT, fruto do seu
investimento no centro tecnológico de Aveiro, foi a primeira empresa mundial a
criar um cartão pré pago. Foi com ele que reagiu à entrada das multinacionais
de comunicações no nosso país e retomou a liderança no sector móvel. Foi com
esse cartão que revolucionou o mercado brasileiro e tornou a VIVO o maior
operador móvel da América latina. O mesmo aconteceu com os acessos à internet,
rede 3 G e um sem número de produtos nascidos da articulação entre uma empresa
com capitais públicos e uma universidade do Estado.
Há quatro anos a PT tinha a
liderança do mercado móvel da América latina. Hoje, é uma empresa endividada
até ao pescoço, sem capacidade de investimento, escorraçada pelo obsoleto
parceiro brasileiro, e à beira de ser comprada por um fundo especulativo. O
mesmo fundo que, depois de adquirir a Cabovisão, fez do despedimento de 100
funcionários o seu primeiro ato de gestão.
Não será certamente
coincidência que a queda livre da PT coincida, temporalmente, com a alienação
da Golden Share do Estado na empresa. Ou que o momento chave da destruição de
valor, a venda da Vivo, tenha acontecido com a oposição do Estado, que acabou
por se vergar à pressão do maior acionista da PT: o BES.
O banco de Ricardo Salgado
precisava de liquidez e o futuro de uma empresa estratégica portuguesa era a
sua última preocupação.
Foram essas necessidades de
liquidez que fizeram com que a PT, durante anos e anos a fio, fosse a empresa
que mais generosos dividendos foi distribuindo. A distribuição de dividendos
muito acima das suas possibilidades, foi o esquema encontrado por Zeinal Bava e
Henrique Granadeiro para gerirem uma complexa teia de interesses. O resultado
está à vista. A sua ligação umbilical às necessidades da finança, leia-se Banco
Espírito Santo, acabou por colocar o futuro da empresa em risco.
Não é a queda de um anjo,
incensado até há pouco tempo pelos sucessivos governos, pela finança e até
colunistas da imprensa especializada, que nos deve preocupar. O que nos
preocupa é o futuro do operador incumbente de comunicações, o futuro de
milhares de trabalhadores ou do investimento em infraestruturas vitais para a
modernização do país.
Não nos esquecemos que a
alienação da Golden Share foi um dos temas da campanha interna do PSD, juntando
todos, à vez, na defesa desta irresponsabilidade.
E por isso está na altura de
confrontar Passos Coelho com as suas próprias garantias.
Dizia o primeiro-ministro que
o fim das Golden Share do Estado teria lugar acautelando os interesses
estratégicos do país. Das duas, uma: ou Passos Coelho, na sua forma distorcida
de ver a economia e a sociedade, entendia que o interesse estratégico do país
passava por entregar uma das mais importantes empresas nacionais a um pequeno
fundo internacional, sem nenhum conhecimento e capacidade de investimento; ou
estamos perante um ato consciente de favorecimento dos interesses privados. Em
ambos os casos, é o interesse nacional que, mais uma vez, sai lesado.
PSD, PS e CDS foram-nos
garantindo que as privatizações não iriam colocar em causa a permanência dos
sectores estratégicos em mãos nacionais. O atual Governo jurou-nos, depois, que
o fim das golden share não hipotecava os interesses do país. Tudo furado.
Não só as privatizações de
sectores como a energia ou combustíveis não trouxeram os proclamados benefícios
da concorrência, como monopólios naturais fundamentais para a soberania
nacional foram parar às mãos de regimes ditatoriais ou aos bolsos de fundos
especulativos sem nenhum interesse de médio ou longo prazo.
O que está em causa é a
irrelevância da PT. O que está em causa é o posto de trabalho de milhares de
pessoas e a previsível deslocação ou desinvestimento no centro tecnológico de
Aveiro, onde se concentra a maior fatia do investimento privado em investigação
no país.
Não há como olhar para o que
está acontecer, aqui e agora, mesmo à frente dos nossos olhos, e insistir, com
certeza acrítica de quem está toldado pelo seu próprio radicalismo ideológico,
que nada correu mal, que isto não poderia ter sido evitado, ou que não há
lições para o futuro.
Sim, está a correr mal. Sim,
podia ter sido evitado. Sim, há lições para o futuro: os setores estratégicos
nacionais têm que estar em mãos públicas, a começar pela TAP, que o governo
tenta vender à pressão sobre os escombros da PT, que tanto contribuiu para
destruir.
Declaração
política na Assembleia da República em 8 de outubro de 2014
[*] Economista, Deputada do Bloco de Esquerda.
Texto retirado do jornal digital Esquerda.net
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
Sendo
esta uma boa carta de apresentação e que pode servir de modelo a quem procura
emprego, decidimos transcrevê-la. Advertimos, no entanto, que é
preferível ter experiência em portas giratórias, se quiser progredir na carreira.
Porteiro do Ritz apresenta currículo
à Tecnoforma [*]
Exmos. Srs.,
Desejo candidatar-me a um lugar na V. excelente
empresa beneficiando do inovador modelo remuneratório que consiste na
substituição do salário pelo pagamento de despesas de representação. Proponho
representar a V. excelente empresa em vários sítios e ocasiões, a saber: em
três refeições diárias; em todas as minhas deslocações; e num escritório
localizado em minha casa, cujas renda, água, luz e telefone ficarão, por isso,
a vosso cargo.
O facto de abdicar por completo de um salário não
significa que o trabalho que desenvolverei não tenha valor - muito pelo
contrário. Tenho várias ideias que gostaria de pôr em prática ao serviço de V.
Exas. Acompanhei com interesse o processo através do qual a V. excelente
empresa obteve financiamento no valor de 1,2 milhões de euros com o objectivo
de formar cerca de 500 técnicos municipais para trabalharem em sete pistas de
aviação e dois heliportos que têm hoje, no total, sete funcionários. O projecto
falhou, e a Tecnoforma terá acabado por receber apenas 311 mil euros para
formar 122 pessoas. Creio que o problema poderia ter sido resolvido com
facilidade acrescentando à formação a formação de formadores. A formação é
extremamente importante. Nessa medida, é fundamental garantir que os formadores
estão aptos a ministrá-la correctamente. Como? Através da formação de
formadores. Neste ponto, coloca-se um problema: como garantir que os formadores
de formadores recebem formação de qualidade? A resposta é evidente: através da
formação de formadores de formadores. E assim sucessivamente, numa espécie de
mise en abyme formativo. Esta matrioska educacional permitiria não só esgotar o
subsídio europeu de 1,2 milhões como também candidatar a empresa a novos
subsídios, na medida em que a formação de formadores, por ser mais especializada,
é mais cara do que a mera formação. O mesmo vale para a formação de formadores
de formadores, em comparação com a simples formação de formadores.
Acresce a tudo isto que a V. excelente empresa formou
funcionários para trabalharem em aeródromos sem actividade, ou com actividade
residual. Ora, como é sabido, a gestão e controlo de aviões provoca forte
ansiedade. Mas a gestão e controlo de aviões que não existem tem potencial para
provocar ansiedade ainda maior. Trata-se de uma espécie de "À Espera de
Godot" aeronáutico. É uma tarefa muito inquietante, e nessa medida deve
requerer formação adicional. Por último, li com muito agrado a entrevista
do antigo proprietário da V. excelente empresa, na qual elogia o vosso
ex-funcionário Pedro Passos Coelho por, e cito, "abrir todas as
portas". Confesso que me comovi quando constatei que a abertura de portas
era, finalmente, valorizada como merece. Tendo em conta a minha experiência de
cerca de 20 anos precisamente nessa área, creio que sou um bom candidato a
desempenhar funções na Tecnoforma.
Aguardo notícias de V. Exas
________
[*] Texto de Ricardo Araújo Pereira, publicado na revista Visão
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Revolta a crueldade islâmica que
está a degolar pessoas, muitas dos países civilizados que lhes bombardeiam
cidades e pilham as riquezas e bens.
Parecem não haver entendido que,
entre a brutalidade da faca e a delicadeza da bomba, a diferença é abissal, evidenciando
a nobreza da civilização do Ocidente.
Experimente-se dar-lhes os meios
com que destruir Paris, Londres, Nova Iorque ou Berlim, e adoptarão com certeza
as guerras de civilização que nos permitem brindar Síria, Afeganistão, Iraque,
Somália, Mali e, até, a Ucrânia europeia, de benefícios diários que toda a
gente conhece.
Como a estupidez tem limites,
concorde Einstein ou não, o bom exemplo encarrila os muitos transviados do
mundo.
Que, por azar, são possuidores de
petróleo ou se encontram muito próximos dele.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
Cavaco Silva, num dos
seus brilhantes discursos, desta vez, no 5 de Outubro, culpou os partidos e a
organização do sistema político pela insatisfação dos portugueses com a
democracia, apelando a uma “reflexão séria” e a “compromissos” para “mudanças
efectivas”.
Esquecendo o facto de
esta luminária ser o político profissional com mais anos no activo, desde
dirigente partidário a primeiro-ministro e, agora, segundo dizem, Presidente da
República, sendo, portanto, um dos principais culpados pelo descrédito na
política em que caiu a maioria dos portugueses, a verdade é que, consciente ou
inconscientemente, desvia a atenção da verdadeira causa da abstenção dos
eleitores e do alheamento da maioria da população.
Se é verdade que a
corrupção, a mentira, os privilégios, a impunidade de muitos políticos (não
todos, como querem fazer crer) é uma realidade (coisa a que Cavaco não se
referia, mas, sim, às leis eleitorais), o que leva muita gente a não participar
na vida política é o facto de sentirem, cada vez mais, que as decisões são
tomadas em instâncias supranacionais, dizendo-lhes que não têm outra coisa a
fazer senão obedecer. É isto que todos repetem, quer Cavaco, quer os partidos da
direita, PS incluído, ou outros, pertencentes ao mesmo bando, como o Presidente
do Banco de Portugal. Este último, o tal que afiançou, na véspera do colapso do
BES, que o BES era um banco de confiança. E, para não destoar, no sábado,
voltou a repetir o estribilho de que cumprir o défice (exigido pela Comissão
Europeia, pela Merkel, pelo BCE, pelo FMI) é “crucial”. Nem seria de esperar
outra coisa de um indivíduo, “filho da pátria” como alguém já o apelidou, com o
currículo que tem (ver biografia na página do Banco de Portugal) e num país
onde o conflito de interesses não conta.
Ora, é este discurso e
esta prática que levam os portugueses menos informados a resignarem-se com um “tem
que ser, o que é que se há-de fazer!”.
O texto de Fernando
Luengo aponta estes dois factos – “a desvalorização das instituições de
representação formal [os parlamentos nacionais, por ex.] e os partidos
políticos, como espaços de representação política” – como estratégia pensada,
no sentido de aumentar o domínio de uma oligarquia que se quer todo-poderosa,
sem os entraves da democracia, por mais limitada que seja.
Um novo capitalismo,
mais oligárquico e autoritário
Por Fernando Luengo*
A gestão que vem sendo feita da crise económica dentro da
União Económica e Monetária está a criar as condições, se não as criou já, para
uma viragem substancial na configuração sistémica dos capitalismos europeus.
Viragem que se iniciou muito antes da implosão financeira, pelo menos desde que
se impôs por todo o lado a doutrina neoliberal, a partir da década de 80 do
século passado, mas que, nos últimos anos, alcançou maior envergadura e
visibilidade.
O protagonismo da Troika – sob esta denominação reúnem-se
três instituições de carácter intergovernamental, a Comissão Europeia, o Banco
Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional -, que impôs as suas
políticas aos governos, parlamentos e cidadãos, e a centralidade adquirida pela
Alemanha, que fez valer e ilpor os seus interesses e os dos seus aliados,
transpondo-os para as instâncias comunitárias, constituem dois elementos
essenciais de um processo de maior amplitude, calado e transcendência, que está
a propiciar uma transformação estrutural dos equilíbrios, consensos e relações
de poder.
Algumas das componentes básicas dessa transformação são: a
desvalorização das instituições de representação formal e dos partidos
políticos como espaços de representação política, a contaminação e ocupação da
política por parte dos grupos económicos e a degradação do estatuto
socio-económico e político de uma parte da classe média.
Deste modo, rompida a maior parte dos diques de contenção
social e política, está a produzir-se um histórico desmantelamento dos Estados
de Bem-estar – que, supostamente, eram o principal emblema das “economias
sociais de mercado” comunitárias -, um questionamento profundo do papel dos
Estados como pedras angulares de um consenso social integrador e o debilitamento
ou desaparecimento das pontes institucionais que, no passado, antes do colapso
financeiro, tornaram possível uma certa redistribuição do rendimento.
Essa refundação sistémica alcança também os próprios
alicerces do processo de acumulação. Consolidaram-se, nestes anos de
decrescimento ou crescimento débil, mecanismos de extracção de rendimentos e
riqueza das classes trabalhadoras paras as oligarquias. É neste contexto que é
necessário situar a redução dos salários nominais e reais de boa parte dos
trabalhadores, o alargamento do horário de trabalho e a intensificação dos
ritmos na execução das tarefas. O desequilíbrio na relação de forças a favor do
capital e contra o trabalho (propiciado pelas reformas laborais, o temor a
perder e não recuperar o emprego, pelo contínuo aumento do desemprego ou pela
permanente ameaça de proceder ao encerramento e deslocalização da empresa)
abriu uma via de acumulação a partir da sobre-exploração dos assalariados. Em direcção idêntica, um
maciço transvase de recursos para as elites, apontam as políticas de
ajustamento orçamental e os diferentes programas, postos em marcha para
resgatar os grandes bancos e sanear os seus balanços, programas que supuseram
uma enorme sangria das arcas públicas.
Está a assistir-se, adicionalmente, a uma ampla
reorganização dos mercados, proporcionada pela recentralização da estrutura
empresarial, pela entrada do sector privado e das lógicas mercantis em parcelas
crescentes do público, através das privatizações e da externalização da gestão,
e a uma abertura de novos nichos de negócio a partir dos espaços deixados por
aquelas empresas que, por carecerem de financiamento ou por se enfrentarem a
uma incerta evolução da procura, reduziram a escala das suas operações ou
desapareceram.
Somemos a tudo isto, para dispor de uma visão completa da
profunda reestruturação do capitalismo que está a ter lugar, a implementação de
uma política monetária laxista, que entrega recursos a quem tem capacidade de
endividamento, contribuindo para o fortalecimento do segmento financeiro da
economia, que, no que diz respeito a privilégios, opacidade e potencial
desestabilizador, permaneceu basicamente intacto.
Resumindo, estamos a ser testemunhas de uma refundação dos
capitalismos europeus (melhor que a confusa expressão “refundação europeia”), à
medida dos interesses e estratégias dos grupos económica e socialmente
privilegiados e dos países com maior potencial competitivo, que supõe o reforço
do perfil oligárquico do projecto comunitário. E a união monetária não só está
a ser o cenário, mas também, por acção ou omissão, está a facilitar esta
mudança sistémica.
__________
*Professor de
Economia Aplicada da Universidade Complutense de Madrid
Texto original em http://blogs.publico.es/econonuestra/2014/10/03/un-nuevo-capitalismo-mas-oligarquico-y-autoritario/
Texto original em http://blogs.publico.es/econonuestra/2014/10/03/un-nuevo-capitalismo-mas-oligarquico-y-autoritario/
Subscrever:
Mensagens (Atom)