O QUE ELES ESCONDEM

quinta-feira, 6 de novembro de 2014


OS EMPREENDEDORES

Por Julio Anguita González*

A confrontação ideológica que a esquerda vai perdendo por não comparência evidencia-se, claramente, tanto na linguagem usada nos meios de comunicação, como no quotidiano da rua. Uma das manifestações mais reiteradas é constituída pelo papel de alguns jornalistas como entrevistadores e, ao mesmo tempo, contraditores das pessoas que aceitam o diálogo. Pessoas que, por certo, costumam ser, com bastante frequência, representantes da esquerda política e ideológica.
Há uns dias, pude comprovar como o interrogador, e não entrevistador, entrava em confrontação com o seu interlocutor, porque este se tinha permitido pôr às claras a corrupção empresarial. Imediatamente, o jornalista alegou que, também ele, era um pequeno empresário e, por conseguinte, integrante dessa irmandade benéfica e filantrópica que, além de “criar riqueza”, dava trabalho. Reparem os leitores na dita expressão “dar trabalho”, oferecer emprego ou aliviar o desemprego. Considero que nós devemos começar já a contradizer todos estes sofistas, mesmo com o risco de que não nos voltem a chamar. A maioria dos leitores e dos telespectadores de rádio e televisão agradecer-nos-ão.
Com bastante ligeireza, quando não aleivosa tendenciosidade, os defensores do sistema costuma identificar, numa relação unívoca, a empresa com o empresário. É evidente que a empresa, entendida como a conjunção de trabalhadores, meios de produção e processos organizativos, com o fim de criar valor, é imprescindível. Contudo, não se pode dizer o mesmo do empresário. A História dá-nos exemplos de autogestão empresarial em empresas colectivizadas e/ou públicas, que se encarregam de deitar por terra a pretensão de unir num conjunto fechado o centro laboral e o empresário privado. A figura do empresário é contingente, a da empresa não. Por isso, deve-se separar ambos os conceitos, para evitar, assim, que a necessária existência da empresa seja associada a algo puramente acessório: o empresário.
Na linguagem política oficial, isto é, a do poder económico e dos seus alternantes representantes no Governo, a denominada “classe empresarial” é fundamental para criar emprego. Daí que, quando aparecem os seus membros ou aqueles que os representam, o discurso monotemático é o de que, sem ajudas de todo o tipo aos empresários, a criação de emprego não pode realizar-se. Como verão os leitores, a história tem raízes no imaginário colectivo do senhor feudal que, de maneira munificente e totalmente altruísta, acede a dar um salário a alguns cidadãos ou cidadãs. Este que escreve estas linhas foi testemunha, nas diferentes localidades onde exerceu a sua profissão, de como um ou outro operário agrícola dizia o quanto era bom o Sr. Fulano, porque dava trabalho. Nunca chegaram a pensar em quem teria apanhado a azeitona ou feito a ceifa se não fossem eles.
Vai sendo hora de relembrar o que aprendemos nos textos dos mestres do pensamento libertador e da experiência de vida. Sem trabalhadores ou assalariados em geral, a empresa não funcionaria. O empresário compra a força física ou mental do trabalhador, porque ela é indispensável à existência da empresa. O que acontece é que, sabendo isso, os empresários e seus coros invertem o sentido das coisas para disfarçar, ocultar e distorcer a sua autêntica natureza. Trata-se de que o trabalhador não seja consciente da sua importância e do papel que tem na produção.
Para distorcer e mascarar ainda mais a realidade, o poder inventou uma léria que, a modos de mezinha milagrosa ou banha da cobra, serve de lubrificante na tarefa de injectar na cabeça dos dominados uma boa nova: sereis como os triunfadores, pertencereis à elite, entrareis no selecto clube dos empreendedores.
A palavra empresário fica atenuada pelo novo vocábulo. Um vocábulo que, devido à sua origem semântica, soa a aventura, a romanticismo social, a forjadores de um new deal, nesta época de crise do capitalismo. Porque, além disso, na grande maioria dos casos, o ou a empreendedor ou empreendedora tem de endividar-se para montar algo que, a seguir, acaba por ser uma ferramenta de escravidão por mor de canais de comercialização, subcontratações e demais dependências de estruturas quase mafiosas do capitalismo em grande.
Creio que a esquerda, globalmente considerada, deve retomar uma das suas lutas mais importantes que, noutros tempos, serviu de consciencialização da grande massa de explorados e marginados: a luta ideológica em todas as frentes e, claro, na mais importante de todas: a linguagem.
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*Professor de História jubilado. Ex-secretário-geral do Partido Comunista de Espanha e da Izquierda Unida

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