OS EMPREENDEDORES
Por Julio
Anguita González*
A confrontação ideológica que a esquerda vai perdendo por
não comparência evidencia-se, claramente, tanto na linguagem usada nos meios de
comunicação, como no quotidiano da rua. Uma das manifestações mais reiteradas é
constituída pelo papel de alguns jornalistas como entrevistadores e, ao mesmo
tempo, contraditores das pessoas que aceitam o diálogo. Pessoas que, por certo,
costumam ser, com bastante frequência, representantes da esquerda política e
ideológica.
Há uns dias, pude comprovar como o interrogador, e não
entrevistador, entrava em confrontação com o seu interlocutor, porque este se
tinha permitido pôr às claras a corrupção empresarial. Imediatamente, o
jornalista alegou que, também ele, era um pequeno empresário e, por conseguinte,
integrante dessa irmandade benéfica e filantrópica que, além de “criar riqueza”,
dava trabalho. Reparem os leitores na dita expressão “dar trabalho”, oferecer
emprego ou aliviar o desemprego. Considero que nós devemos começar já a
contradizer todos estes sofistas, mesmo com o risco de que não nos voltem a
chamar. A maioria dos leitores e dos telespectadores de rádio e televisão
agradecer-nos-ão.
Com bastante ligeireza, quando não aleivosa tendenciosidade,
os defensores do sistema costuma identificar, numa relação unívoca, a empresa
com o empresário. É evidente que a empresa, entendida como a conjunção de
trabalhadores, meios de produção e processos organizativos, com o fim de criar
valor, é imprescindível. Contudo, não se pode dizer o mesmo do empresário. A
História dá-nos exemplos de autogestão empresarial em empresas colectivizadas
e/ou públicas, que se encarregam de deitar por terra a pretensão de unir num
conjunto fechado o centro laboral e o empresário privado. A figura do
empresário é contingente, a da empresa não. Por isso, deve-se separar ambos os
conceitos, para evitar, assim, que a necessária existência da empresa seja
associada a algo puramente acessório: o empresário.
Na linguagem política oficial, isto é, a do poder económico
e dos seus alternantes representantes no Governo, a denominada “classe
empresarial” é fundamental para criar emprego. Daí que, quando aparecem os seus
membros ou aqueles que os representam, o discurso monotemático é o de que, sem
ajudas de todo o tipo aos empresários, a criação de emprego não pode
realizar-se. Como verão os leitores, a história tem raízes no imaginário
colectivo do senhor feudal que, de maneira munificente e totalmente altruísta,
acede a dar um salário a alguns cidadãos ou cidadãs. Este que escreve estas
linhas foi testemunha, nas diferentes localidades onde exerceu a sua profissão,
de como um ou outro operário agrícola dizia o quanto era bom o Sr. Fulano,
porque dava trabalho. Nunca chegaram a pensar em quem teria apanhado a azeitona
ou feito a ceifa se não fossem eles.
Vai sendo hora de relembrar o que aprendemos nos textos dos
mestres do pensamento libertador e da experiência de vida. Sem trabalhadores ou
assalariados em geral, a empresa não funcionaria. O empresário compra a força
física ou mental do trabalhador, porque ela é indispensável à existência da
empresa. O que acontece é que, sabendo isso, os empresários e seus coros
invertem o sentido das coisas para disfarçar, ocultar e distorcer a sua autêntica
natureza. Trata-se de que o trabalhador não seja consciente da sua importância
e do papel que tem na produção.
Para distorcer e mascarar ainda mais a realidade, o poder
inventou uma léria que, a modos de mezinha milagrosa ou banha da cobra, serve de
lubrificante na tarefa de injectar na cabeça dos dominados uma boa nova: sereis
como os triunfadores, pertencereis à elite, entrareis no selecto clube dos
empreendedores.
A palavra empresário fica atenuada pelo novo vocábulo. Um
vocábulo que, devido à sua origem semântica, soa a aventura, a romanticismo
social, a forjadores de um new deal,
nesta época de crise do capitalismo. Porque, além disso, na grande maioria dos
casos, o ou a empreendedor ou empreendedora tem de endividar-se para montar
algo que, a seguir, acaba por ser uma ferramenta de escravidão por mor de canais de comercialização,
subcontratações e demais dependências de estruturas quase mafiosas do
capitalismo em grande.
Creio que a esquerda, globalmente considerada, deve retomar
uma das suas lutas mais importantes que, noutros tempos, serviu de
consciencialização da grande massa de explorados e marginados: a luta
ideológica em todas as frentes e, claro, na mais importante de todas: a
linguagem.
_______
*Professor de História jubilado. Ex-secretário-geral do
Partido Comunista de Espanha e da Izquierda Unida
O texto original pode ler-se em http://colectivoprometeo.blogspot.pt/2014/10/julio-anguita-los-emprendedores.html
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