O QUE ELES ESCONDEM

terça-feira, 16 de dezembro de 2014


Os meios de comunicação social ignoraram o discurso do presidente russo, Putin, proferido a 24 de Outubro deste ano, no XI Encontro Internacional de Valdai, subordinado ao tema “A Ordem Mundial: Novas Regras ou um Jogo sem Regras”.
Por esta razão, e apesar de não termos especial simpatia pelo personagem, decidimos traduzir e divulgar o seu discurso, pelo diagnóstico realista que faz da actual situação mundial.
O texto original, em russo, e a sua tradução em inglês podem ser consultados na página da presidência russa: http://eng.kremlin.ru/news/23137
A nossa tradução foi feita a partir da tradução para espanhol, revista e corrigida pelo politólogo e sociólogo argentino Atílio Boron e que se pode encontrar no seu blogue: http://www.atilioboron.com.ar/2014/11/26.html#more
 

 
Colegas, senhoras e senhores, amigos,

É um prazer dar-lhes as boas-vindas a este XI encontro do Clube Valdai de Discussão Internacional.
Já se disse aqui que, este ano, o clube tem novos co-organizadores, entre eles organizações não-governamentais russas, grupos de especialistas e grandes universidades. Além disso, foi expressa a ideia de ampliar a discussão para incluir não só a problemática russa, mas, também, questões de política e economia globais.
Espero que estas mudanças organizativas e de conteúdo reforcem as posições do clube como um importante foro de discussão e de reunião de especialistas. Com isso, espero que o “espírito de Valdai” possa manter-se – liberdade, abertura, possibilidade de expressar as mais diferentes opiniões e, deste modo, as opiniões sinceras.
Neste sentido, quero dizer que não vou decepcioná-los e falarei clara e sinceramente. Algumas coisas podem parecer duras, mas, se não falarmos directa e sinceramente do que realmente pensamos, não teria sentido reunirmo-nos nestes moldes. Seria melhor, nesse caso, manter os encontros diplomáticos, onde ninguém diz nada com sentido claro e real e, recordando as palavras de um famoso diplomata, darmo-nos conta de que os diplomatas têm línguas próprias para não dizer a verdade.
Reunimo-nos aqui com outros objectivos: Reunimo-nos para falar sinceramente. Hoje, necessitamos franqueza e dureza nas valorações, não para nos atacarmos mutuamente, mas para tentar ir ao fundo das questões e entender o que , na realidade, sucede no mundo, por que razão é menos seguro e menos previsível, por que razão os riscos crescem por todo o lado.
A discussão de hoje teve lugar sob o tema “Novas Regras ou Jogo sem Regras” Na minha opinião, esta formulação descreve muito exactamente o histórico ponto de inflexão em que nos encontramos e a escolha que todos teremos de fazer.
A tese de que o mundo contemporâneo está a mudar muito rapidamente, evidentemente, não é nova. E sei que se falou disso durante a discussão de hoje. É verdade que é difícil não nos darmos conta das dramáticas transformações na política global, na economia, na vida social, na esfera das tecnologias sociais, da informação, da produção.
Peço, desde já, desculpa se repito o que foi expresso por alguns participantes neste foro. É difícil evitá-lo, os senhores falaram em pormenor, mas vou expressar o meu ponto de vista, que pode coincidir ou ser diferente do expendido pelos participantes do foro.
Não nos esqueçamos, ao analisar a situação actual, das lições da História. Em primeiro lugar, as mudanças na ordem mundial – e os acontecimentos que estamos a presenciar hoje são eventos desta escala – foram acompanhadas, regra geral, se não por uma guerra global ou choques globais, por uma cadeia de conflitos intensos de carácter local. Em segundo lugar, a política mundial é, sobretudo, acerca da liderança económica, de questões de guerra e paz e de dimensão humanitária, incluindo os direitos humanos.
No mundo, acumularam-se numerosas contradições. E devemos perguntar-nos, sinceramente, uns aos outros se dispomos de uma rede de segurança fiável. Por desgraça, não há garantias de que o sistema existente de segurança global e regional possa proteger-nos de graves turbulências. O sistema foi seriamente debilitado, fragmentado e deformado. As instituições internacionais e regionais de relações económicas, políticas e culturais vivem tempos difíceis.
Sim, muitos mecanismos de garantia da ordem pacífica foram criados há bastante tempo, sobretudo como consequência da Segunda Guerra Mundial. Permitam-me sublinhar que a solidez deste sistema se baseava não só no equilíbrio de forças e no direito dos vencedores, mas, também, no facto de os “pais fundadores” deste sistema de segurança se relacionarem, respeitosamente, entre si, não tentavam apertar ou esmagar os outros, mas tratavam de chegar a acordos.
O importante é que este sistema necessita desenvolver-se e, apesar de todos os seus defeitos, necessita ser capaz de conter os problemas mundiais existentes dentro de certos limites e de regular a intensidade da natural competitividade entre países.
Estou convencido de que não podemos tomar este mecanismo de pesos e contrapesos, que construímos ao longo das décadas passadas, com tanto esforço e dificuldades, e destruí-lo, sem construir algo em seu lugar. Neste caso, não haveria instrumentos, excepto a força bruta. O que necessitamos é de levar a cabo uma reconstrução racional e adaptá-la às novas realidades do sistema de relações internacionais.
Contudo, os Estados Unidos, que se declaravam a si mesmos vencedores da Guirra Fria, pensaram que não havia nenhuma necessidade disso. E, em vez de estabelecerem um novo equilíbrio de poder, condição indispensável para a ordem e estabilidade, pelo contrário, deram passos que conduziram o sistema a uma aguda e profunda desestabilização.
A Guerra Fria terminou. Mas não o fez com um tratado de paz, mediante acordos compreensíveis e transparentes de observância das normas e padrões existentes ou criação de novos. Isto criou a impressão de que os chamados “vencedores” da Guerra Fria decidiram pressionar os acontecimentos e redesenhar o mundo de modo a servir a satisfação das suas necessidades e interesses. E se o sistema existente de relações internacionais, o direito internacional e os pesos e contrapesos em curso entorpeciam a realização desses objectivos, então o sistema era denunciado como inválido e antiquado e promoviam a sua imediata demolição.
Perdão pela analogia, mas é assim que se comportam os novos ricos, que, de repente, obtêm uma grande riqueza, neste caso na forma de domínio mundial, liderança mundial. E, em vez de, com esta riqueza, comportarem-se sabiamente e com cuidado, inclusivamente, claro está, no seu próprio benefício, penso que fizeram muitos disparates.
Começou um período de diferentes interpretações e deliberados silêncios, na política mundial. Sob o ataque do niilismo legal, o direito internacional tem vindo a retroceder passo a passo. A objectividade e a justiça foram sacrificadas no altar da conveniência política. As normas jurídicas foram substituídas por interpretações arbitrárias e valorações enviesadas. Além disso, o controle total dos meios de comunicação globais permitiu fazer do branco preto do preto branco.
Nas condições de domínio de um país e seus aliados – ou dito de outra forma, os seus satélites -, a procura de soluções globais converteu-se, frequentemente, numa tentativa de impor as suas receitas universalmente. As ambições deste grupo cresceram tanto que as políticas acordadas nos corredores do poder são apresentadas como se fossem a opinião de toda a comunidade internacional. Mas, isso não é assim.
O próprio conceito de “soberania nacional”, para a maioria dos países, converteu-se em algo negativo. Em essência, foi proposta a seguinte fórmula: quanto maior for a lealdade ao único centro de poder mundial, tanto maior será a legitimidade deste ou daquele regime de governo. Mais logo teremos uma discussão livre e, com todo o gosto, responderei às perguntas e gostaria, também, de exercer o meu direito a fazer perguntas. Mas, no decurso desta discussão, tentem refutar a tese que acabo de formular.
As medidas contra os que recusam submeter-se são bem conhecidas e já foram postas em prática muitas vezes. Incluem o uso da força, pressão económica e propagandística, ingerência nos assuntos internos, recurso a uma certa legitimação “supra-legal” quando há que justificar uma solução ilegal neste ou naquele conflito e o derrube de regimes molestos. Nos últimos tempos, fomos testemunhas de uma chantagem aberta contra determinados líderes. Não é em vão que o chamado “grande irmão” gasta milhares de milhões de dólares em manter todo o mundo, incluídos os seus aliados mais chegados, sob vigilância.
Perguntemo-nos até que ponto vivemos confortavelmente, seguros e felizes, num mundo assim; até que ponto é justo e racional. Será que não temos motivos verdadeiros para nos preocuparmos, discutir ou fazer perguntas incómodas e inoportunas? Será que a excepcionalidade dos Estados Unidos, tal como exercem a sua liderança, são, realmente, uma bênção para todos nós e a sua contínua ingerência nos assuntos de todo o mundo está a trazer a paz, prosperidade, progresso, crescimento, democracia e nós tenhamos, simplesmente, que relaxar e gozar?
Permito-me dizer que não, que não é o caso, em absoluto. O diktat unilateral e a imposição dos próprios modelos produz o efeito contrário: em vez de solucionar os conflitos, eles sobem de intensidade; em vez de estados soberanos e estáveis, vemos uma crescente disseminação do caos e, em vez de democracia, o apoio a um muito duvidoso grupo, que vai dos neofascistas ao radicalismo islâmico.
E por que razão apoiam esta gente? Porque os utilizam, numa determinada etapa, como instrumento para alcançar os seus fins, depois, queimam as mãos e recuam.
Fico sempre surpreendido quando vejo os nossos parceiros a cair no mesmo buraco, isto é, a cometer o mesmo erro, uma e outra vez.
Numa certa altura, financiaram movimentos islamitas extremistas para lutar contra a União Soviética. Esses grupos adquiriram experiência de combate no Afeganistão e daí logo saíram os talibãs e Al-Qaeda. O Ocidente, se não os apoiou, pelo menos fechou os olhos e eu diria que deu informação e apoio político e financeiro à invasão, pelos terroristas internacionais, da Rússia (nós não nos esquecemos disto) e dos países da Ásia Central.Só depois dos horríveis ataques cometidos nos Estados Unidos é que despertaram perante a ameaça comum do terrorismo. Recordo que, então, fomos os primeiros a apoiar o povo dos Estados Unidos da América, reagimos como amigos e parceiros a esta terrível tragédia do 11 de Setembro.
Nas minhas conversas com os líderes europeus e dos Estados Unidos, falo sempre da necessidade de uma luta conjunta contra o terrorismo, como tarefa global. Nesta tarefa, não nos podemos render e resignar perante a ameaça, tão-pouco podemos dividi-la em partes separadas, usando uma dupla bitola. Ao princípio, estiveram de acordo connosco, mas, em breve, tudo voltou a ser como antes. Primeiro, a operação militar no Iraque e, em seguida, na Líbia. Este país ficou, realmente, à beira da dissolução. Por que é que a Líbia foi empurrada para esta situação? Agora, está em perigo de destruição total e converteu-se num campo de treino de terroristas. Só a vontade e a inteligência da actual direcção do Egipto permitiu, a este crucial país árabe, sair do caos e do domínio total do extremismo. Na Síria, como em tempos passados, os Estados Unidos e os seus aliados começaram a financiar e a armar directamente os rebeldes, permitindo-lhes engrossar as suas fileiras com mercenários de diferentes países. Permitam-me perguntar: de onde obtêm estes rebeldes o dinheiro, as armas e os especialistas militares? De onde vem tudo isso? Por que razão o Estado Islâmico se converteu num grupo tão poderoso, essencialmente numa real força armada? No que diz respeito ao financiamento, hoje, o dinheiro não provém apenas das drogas, cuja produção, por certo, aumentou em várias ordens de grandeza, e não apenas numa pequena percentagem, durante a presença das forças internacionais no Afeganistão. Os senhores sabem isto, certamente. O financiamento provém, também, da venda do petróleo, da sua extracção e transporte, nos territórios controlados pelos terroristas. Vendem-no a preços de dumping e há alguém que o compra, o revende, ganha dinheiro com isso, sem pensar que está a financiar os terroristas, que, cedo ou tarde, virão ao seu território semear a morte no seu próprio país.
E os recrutas, de onde vêm os novos recrutas? No Iraque, depois de Saddam Hussein ter sido derrubado, as instituições estatais, incluindo o exército, ficaram em ruínas. Nessa altura, dissemos: tenham muito, muito cuidado. Vocês estão a mandar essa gente para as ruas e que vai ela fazer? Não esqueçam que – justamente ou não – eles estavam em posições de mando de uma potência regional relativamente grande. Em que é que os estão, agora a converter?
Qual foi o resultado? Dezenas de milhares de soldados e oficiais, antigos activistas do partido Baaz, atirados para a rua, juntaram-se às fileiras dos rebeldes. Estará aí a chave da eficácia do Estado Islâmico, o ISIS? Actuam de uma maneira muito eficaz, do ponto de vista militar, é gente muito profissional. A Rússia advertiu, em repetidas ocasiões, para o perigo de acções armadas unilaterais, as ingerências nos assuntos de estados soberanos e o namoro a grupos extremistas e radicais. Insistimos na necessidade de incluir os grupos que lutam contra o governo central da Síria, incluído o ISIS, na lista de organizações terroristas. Mas vimos algum resultado? Foi um apelo em vão.
À vezes temos a impressão de que os nossos colegas e amigos lutam constantemente contra os resultados da sua própria política, que dedicam os seus esforços a lutar contra riscos que eles próprios criaram, pagando, por isso, um preço cada vez maior.
Colegas, este período de dominação unipolar demonstrou claramente que o domínio de um só centro de poder não leva ao aumento da governabilidade dos processos globais. Pelo contrário, esta construção instável mostrou a sua incapacidade para lutar contra ameaças como os conflitos regionais, o terrorismo, o narcotráfico, o fanatismo religioso, o chauvinismo e o neonazismo. Ao mesmo tempo, abriu um amplo caminho para um hipertrofiado orgulho nacional, manipulando a opinião pública, para que consinta que o forte acosse e suprima o mais débil.
Essencialmente, o mundo unipolar é simplesmente, um meio para justificar o domínio sobre povos e países. O mundo unipolar converteu-se em algo demasiado incómodo, uma carga demasiado pesada e incontrolável, inclusive para o seu autoproclamado líder. Comentários do género ouviram-se aqui e eu estou totalmente de acordo com isso. Daí as actuais tentativas, numa nova etepa histórica, de recriar algo parecido a um mundo quasi-bipolar, como um modelo conveniente de perpetuação da liderança americana. É irrelevante quem ocupa o lugar do “centro do mal” na propaganda americana, o antigo lugar da URSS, como principal adversário. Poderia ser o Irão, como país que tenta aceder à tecnologia nuclear; a China, como primeira economia do mundo; ou a Rússia, como superpotência nuclear.
Hoje, vemos, de novo, tentativas de fragmentar o mundo, traçar novas linhas de divisão, estabelecer coligações criadas não “a favor de”, mas “contra” quem quer que seja, criar, de novo, a imagem de um inimigo, como foi feito durante a Guerra Fria, e conseguir o direito a liderar, ou se preferirem, o direito a ditar condições. Era assim como se tratava a situação durante a época da Guerra Fria. Todos o compreendemos e sabemos. Aos seus aliados, os Estados Unidos diziam sempre: “Temos um inimigo comum, um rival terrível, é o centro do mal e nós estamos a defender-vos dele. Por isso, temos o direito a dirigir-vos, obrigar-vos a sacrificar os vossos interesses políticos e económicos e fazer-vos partilhar os custos desta defesa colectiva, mas seremos nós, evidentemente, a tratar disso”. Em resumo, num mundo novo e em mudança, vemos hoje, outra vez, a tentativa de reproduzir estes modelos conhecidos de condução global, para garantir a posição excepcional dos Estados Unidos e colher dividendos políticos e económicos.
Mas estes objectivos estão, crescentemente, divorciados da realidade e em contradição com a diversidade do mundo e criarão, indefectivelmente, enfrentamentos e reacções de resposta que, finalmente, terão o efeito contrário ao pretendido. Vemos todos o que sucede quando a política se mistura, imprudentemente, com a economia e a lógica da confrontação, que só prejudica as próprias posições e interesses económicos, inclusive os interesses económicos nacionais.
Os projectos económicos conjuntos e os investimentos mútuos aproximam, objectivamente, os países, ajudam a suavizar os problemas actuais das relações entre estados. Contudo, hoje em dia, a comunidade económica global sofre uma pressão sem precedentes, por parte dos governos ocidentais. De que negócios, de que pragmatismo e conveniência económica podemos falar , quando ouvimos slogans como “a pátria está em perigo”, “o mundo livre está ameaçado” e “a democracia está em risco”? Perante isto, todos (no Ocidente) necessitam mobilizar-se. Mas, estes slogans são os que constituem uma verdadeira política de mobilização.
As sanções estão a minar as bases do comércio mundial, as normas da OMC e os princípios da inviolabilidade da propriedade privada. Golpeiam fortemente o modelo liberal de globalização, baseado nos mercados, a liberdade e a competitividade; um modelo, permitam-me recordá-lo, cujos maiores beneficiários foram precisamente os países ocidentais. Agora, arriscam-se a perder a confiança de que gozavam como líderes da globalização. Nós interrogamo-nos: era necessário fazer isto? No fim de contas, o bem-estar dos próprios Estados Unidos depende, em grande medida, da confiança dos investidores, dos detentores estrangeiros de dólares e títulos do Tesouro americano. Agora, a confiança está a ser minada e sinais de desilusão acerca dos frutos da globalização aparecem em muitos países. O precedente de Chipre e a motivação política das sanções só acentuarão as tendências para o fortalecimento da soberania económica e financeira dos países, ou uniões regionais, com o objectivo de procurar modos de se protegerem dos riscos das pressões externas. Assim, cada vez mais países tentam sair da dependência do dólar e criam sistemas financeiros e comerciais alternativos e novas moedas de reserva. Na minha opinião, os nossos amigos americanos estão, simplesmente, cortando o ramo em que estão sentados. Não há que misturar a política com a economia, mas é precisamente isso que está acontecendo, agora. Pensava, e continuo a pensar, que as sanções motivadas politicamente são um erro, que traz prejuízos a todos, mas estou seguro de que, mais tarde, falaremos disto.
Sabemos como se tomaram essas decisões e quem exerce a pressão. Mas, permitam-me chamar a atenção sobre isto: a Rússia não se vergará perante as sanções, nem será prejudicada por isso, nem a verão bater à porta de alguém a mendigar ajuda. A Rússia é um país auto-suficiente. Vamos trabalhar dentro do ambiente económico internacional existente, desenvolver a nossa produção e tecnologia e actuar de forma decidida para realizar as transformações que sejam necessárias. A pressão exterior, como ocorreu em anteriores ocasiões, só terá como resultado consolidar a nossa sociedade, manter-nos alerta e concentrados nos nossos principais objectivos de desenvolvimento. As sanções, evidentemente, são um estorvo. Tentam, com elas, prejudicar-nos, bloquear o nosso desenvolvimento, isolar-nos política, económica e culturalmente, isto é, condenar-nos ao atraso. Mas, deixem-me dizer-lhes, novamente, que hoje o mundo é um lugar muito diferente. Não temos a menor intenção de nos fecharmos, elegendo um caminho de desenvolvimento confinado, que nos leve a viver em autarcia. Estamos sempre dispostos ao diálogo, incluindo a normalização das relações das relações económicas e políticas. Contamos, para isso, com as atitudes e comportamentos pragmáticos das comunidades de negócios dos principais países.
Ouve-se, hoje, afirmar que a Rússia vira as costas à Europa – ouviu-se, seguramente, no decurso desta discussão – e que está procurando outros parceiros comerciais, sobretudo na Ásia. Quero dizer que isso não é assim, de modo nenhum. A nossa política activa, na região Ásia-Pacífico, não começou ontem, nem como resposta às sanções, sendo uma política iniciada há muitos anos. Tal como muitos outros países, os ocidentais incluídos, nós vemos que a Ásia tem um papel cada vez maior no mundo, tanto na economia, como na política, e não podemos dar-nos ao luxo de subestimar ou ignorar estes desenvolvimentos. Quero sublinhar, de novo, que todos o fazem e nós fá-lo-emos, tanto mais que uma parte significativa do nosso território está na Ásia. Por que deveríamos abster-nos de utilizar a nossa vantagem competitiva nesta área? Isso seria simplesmente miopia, uma grave falta de visão, a longo prazo.
Desenvolver relações económicas com esses países e realizar projectos conjuntos de integração criam, também, grandes incentivos para o nosso desenvolvimento interno. As actuais tendências demográficas, económicas e culturais dizem-nos que a dependência de uma única superpotência diminuirá, objectivamente, Isto é o que especialistas europeus e norte-americanos têm dito e escrito, também eles. Provavelmente, os desenvolvimentos na política mundial reflectirão os mesmos factos que estamos vendo na economia global: uma competitividade forte, em nichos específicos, e frequentes mudanças de líderes, em áreas específicas. Isto é inteiramente possível.
É indubitável que os factores humanos – educação, ciência, saúde, cultura – terão um papel crescente na competitividade global. Isto, por seu lado, tem um forte impacto nas relações internacionais, porque a eficácia deste soft power dependerá, em grande medida, do êxito real na formação do capital humano, mais do que em sofisticados truques de propaganda.
Ao mesmo tempo, a formação do chamado mundo policêntrico (também quero chamar a atenção para isto, estimados colegas), em e por si mesmo, não melhora a estabilidade; de facto, o mais provável é o contrário. O objectivo de conseguir um equilíbrio global transforma-se num complicado quebra-cabeças, numa equação com muitas incógnitas.
Que nos espera, portanto, se escolhermos não optar por esses regras - ainda que as saibamos estrictas e inconvenientes - mas viver sem qualquer regra? Precisamente, este cenário é inteiramente possível e não o podemos descartar, dadas as tensões da situação global. Pode-se fazer muitos prognósticos, observando as tendências actuais, mas, por desgraça, não são optimistas. Se não criarmos um sistema claro de obrigações mútuas e de acordos, se não construirmos um mecanismo de condução e resolução das situações de crise, os sintomas da anarquia global aumentarão, inevitavelmente.
Já hoje vemos um rápido crescimento das possibilidades de uma série de violentos conflitos, com participação directa ou indirecta das grandes potências. E os factores de risco incluem, não só os tradicionais confrontos entre países, mas, também, a instabilidade interna de alguns países, sobretudo dos situados na intersecção dos interesses geopolíticos das grandes potências ou na fronteira das grandes zonas histórico-culturais, económicas e civilizacionais.
A Ucrânia, sobre a qual, estou certo, se discutiu muito e de que falaremos ainda mais, é um dos exemplos deste tipo de conflitos, que afectam o equilíbrio mundial de forças, e creio estar longe de ser o último. Daí vem a sequente ameaça real de destruição do sistema de acordos sobre limitação e controle de armas. E o começo deste processo foi provocado pelos Estados Unidos, quando, em 2002, e de forma unilateral, abandonou o Tratado de Mísseis Antibalísticos e, depois, começou, e hoje continua activamente, a criar o seu sistema de mísseis de defesa global.
Colegas, amigos,
Quero chamar a vossa atenção para o facto de não termos sido nós quem começou esse processo. Estamos a voltar àqueles tempos em que, em lugar do equilíbrio de interesses e garantias mútuas, era o medo, o risco da autodestruição, que afastava as nações do conflito directo. À falta de instrumentos legais e políticos, as armas voltam uma vez mais ao centro da agenda global. São utilizadas onde convém e como convém, sem nenhuma sanção do Conselho de Segurança da ONU. E se o Conselho de Segurança recusa adoptar tais decisões, diz-se de imediato que é um instrumento antiquado e ineficaz.
Muitos Estados não vêem outras garantias da sua soberania senão criar as suas próprias bombas. Isto é extremamente perigoso. Somos partidários de conversações contínuas e insistimos na necessidade de conversações para diminuir os arsenais nucleares. Mas, discussões sérias, sem duplos critérios.
Que quero dizer? Hoje, muitos tipos de armas de grande precisão são, pela sua capacidade destrutiva, quase armas de destruição maciça. E, em caso de renúncia plena ao arsenal nuclear ou diminuição crítica do mesmo, o país que ostente a liderança na criação e produção destes sistemas de alta precisão terá uma clara vantagem militar. Romper-se-á a paridade estratégica, o que, muito provavelmente, terá um efeito desestabilizador e aparecerá a tentação de usar o chamado “primeiro ataque preventivo global”. Numa palavra, os riscos não diminuirão, mas aumentarão.
A seguinte ameaça evidente é o aumento dos conflitos étnicos, religiosos e sociais. Estes conflitos são perigosos, não só em si mesmos, mas, também, porque criam zonas de anarquia, de ausência de qualquer lei e de caos, onde se sentem bem os terroristas e os criminosos, e florescem a pirataria e o tráfico de pessoas e drogas. Por certo, os nossos colegas tentaram dirigir estes processos, utilizar os conflitos regionais e construir “revoluções coloridas”, para satisfazer os seus interesses, mas o génio escapou-se-lhes da garrafa. Parece que nem os pais da “teoria do caos controlado” sabem o que fazer com o caos provocado e aprofunda-se a divisão e as dúvidas entre eles.
Seguimos muito de perto as discussões nas elites dirigentes e entre os especialistas. Basta ler os títulos da imprensa ocidental, durante o último ano: os mesmos a quem chamavam lutadores pela democracia são, depois, caracterizados como islamitas; ao princípio, falavam de revoluções e, depois, de tumultos e revoltas. O resultado é evidente: uma maior expansão do caos global.
Colegas, dada a situação global, é o momento de começar por nos pormos de acordo sobre certas questões de princípio, o que é tremendamente importante e necessário e muito melhor do que separar-nos e regressar cada qual para o seu lado. Tanto mais quanto nos enfrentamos a problemas comuns e estamos, como se diz, no mesmo barco. O caminho lógico para sair desta situação é a cooperação entre nações e sociedades, procurando respostas colectivas aos múltiplos desafios e uma gestão comum no enfrentamento dos riscos. Claro, alguns dos nossos parceiros, por algum motivo, só se lembram disto quando convém aos seus interesses.
A experiência prática mostra que as respostas conjuntas aos problemas não são sempre uma panaceia; é evidente e há que reconhecê-lo. Além disso, na maioria dos casos, são difíceis de conseguir: não é fácil superar as diferenças dos interesses nacionais e a subjectividade dos diferentes pontos de vista, sobretudo quando se trata de países com uma tradição cultural e histórica diferente. Mas, há exemplos que demonstram que, quando há objectivos comuns e actuamos com base em critérios unificados, podemos, conjuntamente, alcançar êxitos reais.
Permitam-me recordar a solução do problema das armas químicas, na Síria, o dálogo substantivo sobre o programa nuclear iraniano e o nosso trabalho na questão norte-coreana, que também teve alguns resultados positivos. Por que não utilizar toda esta experiência, tanto para a solução de problemas locais, como globais?
Qual deveria ser o fundamento legal, político e económico da nova ordem mundial, que garanta a estabilidade e segurança, que garanta uma sã competitividade e não permita a formação de novos monopólios a bloquear o desenvolvimento? É pouco provável que alguém possa, agora, dar uma resposta acabada, absolutamente exaustiva, a esta questão. É necessário um longo trabalho, com a participação de um amplo círculo de países, empresas globais, sociedades civis e de foros de especialistas como o nosso.
Contudo, é evidente que o êxito e um resultado real só serão possíveis se os participantes-chave da vida internacional puderem harmonizar os seus interesses básicos, na base de uma lógica de auto-limitação, e derem o exemplo de liderança responsável e positiva. Há que definir, claramente, até onde podem chegar as acções unilaterais e onde e quando se deve aplicar mecanismos multilaterais. E, para melhorar a eficiência do direito internacional, devemos resolver o dilema nas acções da comunidade internacional, para garantir a segurança e os direitos humanos, o princípio da soberania nacional e a não ingerência nos assuntos internos dos países.
Este tipo de colisões leva, cada vez mais frequentemente, à ingerência estrangeira arbitrária em processos internos muito complicados e, uma e outra vez, provocam perigosos conflitos entre os principais actores mundiais. A manutenção da soberania é um elemento supremamente importante para a manutenção e reforço da estabilidade mundial.
Está claro que a discussão sobre os critérios de utilização da força externa é muito complicada; é quase impossível separá-la dos interesses dos diferentes países. Contudo, é bastante mais perigosa a falta de acordos compreensíveis para todos, quando não se estabelecem, claramente, as condições para que a ingerência seja necessária e legal. Acrescento a isto que as relações internacionais devem construir-se sobre o direito internacional, em cuja base devem estar princípios morais tais como a justiça, a igualdade e a verdade. Talvez o mais importante seja o respeito pelo parceiro e seus interesses. É uma fórmula óbvia, mas que, se for seguida, pode mudar de raiz a situação no mundo. Estou certo de que se existir vontade, podemos restabelecer o funcionamento do sistema de instituições internacionais e regionais. Não é necessário, sequer, construir algo de novo a partir do zero, isto não é um “greenfield”, um terreno virgem, tanto mais quando as instituições criadas após  a Segunda Guerra Mundial são universais e podem ser preenchidas com conteúdos modernos, adequados à condução da situação actual.
Isto é verdade em relação ao melhoramento do trabalho da ONU, cujo papel central é insubstituível. E da OSCE, o Organismo para a Segurança e Cooperação Europeias, que ao londo de 40 anos provou ser um mecanismo de garantia da segurança e cooperação na zona euro-atlântica. Há que dizer que, agora mesmo, na solução da crise no sudeste da Ucrânia, a OSCE está a ter um papel muito positivo.
À luz das mudanças fundamentais no ambiente internacional, a crescente ingovernabilidade e as diferentes ameaças obrigam-nos a forjar um novo consenso entre as forças responsáveis. Não se trata de qualquer acordo local ou de uma separação de esferas de influência, ao estilo da diplomacia clássica, ou do domínio completo e global de algum actor. Creio que se necessita de uma nova versão da interdependência. Não há que lhe ter medo. Pelo contrário, é um bom instrumento para harmonizar posições.
Isto é particularmente relevante se se levar em conta o fortalecimento e crescimento de determinadas regiões do planeta, o que comporta a exigência dos ditos polos, criando organizações regionais poderosas e elaborando normas para a sua interacção. A cooperação entre estes centros daria uma força considerável à segurança mundial, à política e economia. Mas, para haver êxito num tal diálogo, temos que partir do pressuposto de que todos os centros regionais e os projectos de integração, nascidos à sua volta, devem ter idêntico direito a desenvolver-se, de tal modo que possam complementar-se mutuamente e que ninguém os possa forçar a incorrer em conflitos ou posições artificiais. Acções destrutivas deste tipo romperiam as relações entre estados e eles mesmos atravessariam situações muito difíceis, chegando, inclusive, à sua própria destruição.
Gostaria de lhes recordar os acontecimentos do ano passado. Dissemos, então, aos nossos parceiros, tanto aos americanos como aos europeus, que decisões apressadas e às escondidas sobre, por exemplo, a integração da Ucrânia na União Europeia, comportavam grandes riscos. Não dissemos nada sobre política, falávamos apenas de economia e dizíamos que tais passos, realizados sem nenhum acordo prévio, afectava os interesses de muitas outras nações, incluindo a Rússia como principal parceiro comercial da Ucrânia, e que uma ampla discussão sobre estes temas era necessária. Por certo, recordo, relativamente a isto, a entrada da Rússia, por exemplo, na OMC requereu 19 anos, o que supôs um duro trabalho, mas conseguiu-se um consenso.
Por que trago este tema à colacção? Porque, na implementação do projecto de integração da Ucrânia, os nossos parceiros farão entrar os seus bens e serviços por uma porta traseira, para dizê-lo de algum modo, e nós não concordamos com isso e ninguém pediu a nossa opinião. Tivemos discussões sobre todos os temas relacionados com a integração da Ucrânia na EU, mas quero sublinhar que isso teve lugar de maneira totalmente civilizada, indicando os possíveis problemas, apresentando argumentos e razões. Ninguém quis ouvir-nos, nem falar connosco, dizendo-nos, simplesmente: “Não é assunto vosso, ponto. Fim da discussão”. Em vez de um diálogo amplo e compreensivo, mas, sublinho, civilizado, a controvérsia tomou outro rumo e desembocou num golpe de estado, levaram o país ao caos, ao colapso económico e social e provocaram uma guerra civil com muitíssimas vítimas. Porquê? Quando pergunto aos meus colegas a razão, não há resposta. Ninguém responde nada; é assim e ponto. Ficam todos sem resposta ou dizem que isso foi o que sucedeu. Mas, se não se tivesse alentado tais acções e atitudes, as coisas não teriam ocorrido como ocorreram. Afinal (já falei disto), o anterior presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovitch, havia assinado e aceitado tudo. Para quê fazer tudo isto, que sentido teve? É esta uma forma civilizada de resolver as questões? Parece que aqueles que organizaram mais e mais “revoluções coloridas” se consideram a si próprios uns “artistas geniais” e não podem parar.
Tenho a certeza de que o trabalho de associações de integração, as estruturas de cooperação regional, as estruturas de cooperação regional deverão construir-se numa base clara e transparente. Um bom exemplo disso é o processo de formação da União Económica Euroasiática. Os estados membros deste projecto informaram, previamente, os seus parceiros das suas intenções, dos parâmetros da nossa união e dos princípios do seu funcionamento, que estavam totalmente de acordo com as normas da Organização Mundial de Comércio.
Acrescento que também demos as boas-vindas ao início de diálogo entre as uniões europeia e euroasiática. Mas, quanto a isto, também nos hostilizaram quase sempre e tão-pouco se entende por quê: que temem? E, claro, neste trabalho conjunto, consideramos ser necessário o diálogo (falei disso muitas vezes e ouvi muitos dos nossos parceiros ocidentais), aceitar a necessidade de formação de um espaço único económico e de cooperação humanitária, que se estenda do Atlântico ao Pacífico.
Colegas, a Rússia fez a sua escolha. As nossas prioridades são o aperfeiçoamento das instituições democráticas e de economia aberta, um desenvolvimento interno acelerado, com todas as tendências positivas actuais no mundo, e a consolidação da sociedade, com base nos valores tradicionais e no patriotismo. Temos um itinerário pacífico, positivo, de integração. Trabalhamos activamente com os nossos colegas da União económica Euroasiática, na Organização de Cooperação de Shangai, com os BRICS e outros parceiros. Esta agenda está dirigida ao desenvolvimento das relações entre países, e não à sua separação. Não queremos criar nenhum bloco ou ver-nos envolvidos em nenhum intercâmbio de golpes.
Nâo têm nenhuma base aqueles que asseguram que a Rússia trata de estabelecer algum tipo de império, violando a soberania dos seus vizinhos. Tal acusação carece de fundamento. A Rússia não necessita de nenhum lugar especial, exclusivo, no mundo, quero reiterar. Respeitando os interesses de outros, queremos, simplesmente, que se tenham em conta os nossos e se respeite a nossa posição.
Todos sabemos que o mundo entrou numa época de mudanças e transformações globais e todos necessitam ter cuidado e evitar dar passos sem reflectir. Nos anos posteriores à Guerra Fria, os participantes na política mundial perderam um pouco essas qualidades. Agora, há que recordarmo-nos delas. M caso contrário, as esperanças de um desenvolvimento pacífico e estável são uma perigosa ilusão e as actuais comoções serão um prelúdio do colapso da ordem mundial.
Sim, certamente já lhes falei disto: a construção de uma ordem mundial mais estável é uma tarefa complicada, trata-se de um trabalho longo e difícil. Fomos capazes de criar umas regras de interacção, depois da Segunda Guerra Mundial; e pudemos chegar a um acordo, nos anos 70, em Helsínquia. A nossa obrigação comum é a de encontrar uma solução para esta tarefa fundamental, nesta nova etapa de desenvolvimento.
Muito obrigado pela vossa atenção.
 

Sem comentários:

Enviar um comentário