O QUE ELES ESCONDEM

terça-feira, 2 de setembro de 2014


Em tempos da União Soviética, Rostropovich, o violoncelista, expatriou-se, para não ter que entregar parte do que ganhava ao seu país. Passou, então, a deliciar-se no convívio de gente fina, como a rainha de Inglaterra. Logo que lhe foi possível, comprou um palácio, em Leninegrado, cidade rebaptizada com o nome de São Petersburgo, em homenagem à miséria do século XIX, trazida de volta pelo capitalismo mais feroz.
Nos últimos dias, os meios de comunicação portugueses descobriram umas boas dezenas de médicos cubanos a trabalhar, em Portugal, no serviço público de saúde. A informação foi dada, não para denunciar a falta de médicos no SNS, ou as suas causas, mas para nos dizer que parte do que o Estado português paga pelos serviços desses médicos é enviada para o Estado cubano.

Numa sociedade onde se aplaude a ganância e os heróis são os que comem sobre o cadáver dos outros (ver o número de mortes por falta de assistência médica, suicídios por desespero de quem fica sem emprego, sem casa e sem comida), é natural que não se compreenda (ou não se queira compreender) aqueles que se regem por valores de humanidade, de solidariedade (nada a ver com caridade) e de verdadeiro patriotismo (1).
É destes últimos que fala a crónica de Fernando Ravsberg, jornalista, a viver há mais de 20 anos em Cuba, acusado de dar “uma no cravo, outra na ferradura”, quer dizer, ser objectivo, apontando os erros, mas, também, o que de bom, de excelente tem Cuba para dar, como exemplo, ao mundo.

Entre Rostropovich e médicos e artistas cubanos existe um abismo. Um abismo que separa o pré-humano (no circo, os macacos são também virtuosos) do humano. Mas, como todos os abismos, este pode fazer-nos parar, olhar para o lado e ver que caminhos há, diferentes, à nossa disposição.

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 (1) Aconselha-se a leitura do livro de João Ferreira do Amaral, Em Defesa da Independência Nacional, Lua de Papel, Abril de 2014


Cuba, onde a rua é uma boa escola

Fernando Ravsberg*

 La Habana (Cuba) 30/08/2014

Muitos artistas deram ao seu trabalho uma projecção social que transcende a sua obra e repercute directamente na gente comum. Ensinam arte em plena rua, convertem o seu bairro numa galeria, levam a ópera a bairros e aldeias, reparam as casas dos seus moradores ou criam estúdios para gravar os discos que as discográficas rejeitam.
 
 
Na maioria dos casos, estes projectos sociais vão-se custeando com o seu próprio dinheiro e esforço. “Estes são estúdios de gravação que não se auto-financiam e estão sempre em números vermelhos. Financio-os eu, com os meus espectáculos no estrangeiro, como tudo o que faço em Cuba” – conta-nos o autor-intérprete Silvio Rodriguez, numa entrevista. Deve, também, financiar do seu bolso os concertos gratuitos, que dá nos bairros mais humildes de toda a ilha. Assegura o autor-intérprete que se trata de um modo de vida: ”eu já não saberia viver de outra forma, Fernando, seria estranho, para mim, viver de outra maneira, não me encontraria, não poderia olhar-me ao espelho”

O artista plástico José Fúster fez, do seu bairro, Jaimanitas, uma gigantesca galeria de arte, onde se combina a beleza com a reparação das casas dos seus vizinhos. Alguns dizem que é um Gaudí tropical e, além de uma certa semelhança nas formas, texturas e cores, há uma evidente admiração pelo arquitecto catalão, imortalizada, numa esquina do bairro, por um mural de cerâmica, dedicado à sua memória.
Fúster explicou ao Público que “o projecto começou em 1994, em pleno Período Especial (crise económica), e é um símbolo do meu optimismo. Diziam-me que era um projecto demasiado caro, mas queria demonstrar que, com a minha pintura, podia pagá-lo, sem pedir nada ao Estado”. E, depois de 20 anos de trabalho, ficou demonstrado que o sonho era possível. “Em vez de ser rico, trato de gastar o meu dinheiro com os meus vizinhos, viver neste ambiente e ver crianças felizes, é como ter uma grande família. Satisfaz-me tremendamente partilhar não o que me sobra, mas parte do que tenho com os pobres da terra”.

Um projecto semelhante nasceu na ruela de Hamel, em pleno coração do centro de Havana. Salvador González conseguiu que os moradores lhe cedessem os muros e paredes das suas casas para os converter em enormes murais.
A seguir à pintura, multiplicaram-se as esculturas, apareceu a música, a dança e começaram a chegar cubanos de todas as partes. Hamel é uma obra viva. Agora, trabalham na criação de um parque infantil, que avança lentamente, porque todo o dinheiro sai do bolso de Salvador.

A transcendência é tal que, hoje, a outrora velha e suja ruela é escala obrigatória dos turistas que querem ver a Cuba profunda, a das gentes comuns, a da santaria e da rumba.
Poderia pensar-se que se trata de casos excepcionais, mas, no típico Paseo del Prado de Havana, aos fins-de-semana, ao meio-dia, mais de 200 artistas dedicam o seu tempo a dar aulas gratuitas, em particular às crianças e avós. Centenas de cubanos vêm de toda a capital e, também, dos concelhos mais próximos, trazem banquinhos articulados e sentam-se debaixo das árvores a aprender, desde pintura até origamis (2) asiáticos, passando pela espanholíssima renda de bilros. Cecilio Avilés dirige o projecto Imagen 3 e, para ele, “a verdadeira projecção de um artista está em quando pode ter impacto positivamente noutro ser humano e, quando isso é conseguido com centenas, a felicidade é enorme, não há melhor paga para um verdadeiro artista”.

Mas, nem todos foram compreendidos. O cantor lírico Ulises Aquino pertenceu à TVE e trabalhou noutras companhias da Europa e dos EUA. Contudo, regressou a Cuba com o sonho de levar a ópera ao cubano comum. Criou, então, a sua própria companhia, a Ópera de la Calle (Ópera da Rua), e saiu para percorrer bairros e aldeias, com um repertório que incluía música religiosa afro-cubana, Freddy Mercury e o mais antiquado da operística internacional, num só espectáculo. O seu êxito foi tão grande, que decidiram abrir um centro cultural com um restaurante para financiar o concerto. Apesar do apoio do Ministério da Cultura, o Partido Comunista concelhio ordenou o encerramento e enviou a Ópera, outra vez, para a rua. Contudo, Aquino não se rende: ”não deixámos de trabalhar, voltámos às ruas e aos teatros, realizámos mais de 120 espectáculos, em Cuba, só este ano” – diz-nos, antes de anunciar que, este mês, vão ao Canadá para a inauguração do Festival de Ópera do Quebeque e actuarão, igualmente, em Montreal e Toronto.
Nenhum deles se sente um mecenas. Ulises Aquino, simplesmente, não quer deixar a sua pátria e reconhece que “em qualquer outro país, tudo teria sido mais fácil, mas não sei viver sem Cuba. Não conseguiria viver com dinheiro e cheio de saudades”.

Silvio Rodriguez pensa que “em Cuba, há uma espécie diferente, graças à formação que nos deu a vida que temos tido. Creio que, aqui, se construiu um novo ser humano”. E finaliza a entrevista, perguntando a si mesmo como é possível que um governo tão mau, como é descrito pelos inimigos, tenha formado este povo tão bom, reconhecido por todos.
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(1) Arte tradicional japonesa, de papel dobrado. [N.T.]

*Fernando Ravsberg é actualmente correspondente, em Cuba, do jornal digital espanhol Público e professor de pós-graduação em “Informação internacional e países do sul”, na Universidade Complutense de Madrid. Foi correspondente da BBC Mundo até há poucos meses. Trabalhou, também, para a Rádio Nacional da Suécia, Telemundo dos EUA e TV Azteca do México. É autor de três livros, “El Rompecabezas Cubano”, “Reportajes de Guerra” e “Retratos”, além do vasto conjunto de crónicas, escritas para a BBC, intituladas “Cartas desde Cuba”.


 

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