O QUE ELES ESCONDEM

domingo, 14 de setembro de 2014


Tem Portas toda a razão: Lagarde devia ter referido o sucesso de Portugal, tão grande ou maior que o de Espanha. Mas ficou desculpada, pois fora um “lapso involuntário”.

Respirámos todos de alívio, não fosse dar-se o caso de haver lapsos propositados, à imagem das demissões irrevogáveis que nunca o foram.

Igualmente grave seria pormo-nos a pensar que os políticos profissionais, tal vendedores de feira, moldam o seu discurso ao lugar, momento e público que têm pela frente e que Lagarde, falando em França, mas sabendo-se escutada em Espanha, decidiu vender dois cobertores pelo preço de um só: aos franceses, que não devem rejeitar o bom que é a austeridade e, aos espanhóis, que não devem prestar atenção ao Podemos, mas orgulharem-se do seu governo que transformou a Espanha num modelo.

E o lapso, afinal, não é lapso. Portugal não tem, ainda, um movimento social que ponha em perigo o poder dominante. É em Espanha que “o fantasma do poder popular”, como diz Felipe Alcaraz, está a assombrar a casta das Lagardes.

 

 GOVERNAR SEM GRAVATA

Felipe Alcaraz*

Estão caindo todas as solenidades e carismas do poder. Do poder de sempre e do monopólio de uns poucos. Esse poder que falava em latim, que se distanciava com gestos elegantes, apagava as luzes atrás de si e fechava-se, finalmente, em gabinete, para dizer as coisas a sós. E, sobretudo, para decidir uma mensagem: o poder, nem todos o poderão exercer, nem todos estarão capazes. É um assunto complicado que exige uma imensa responsabilidade.

Pois bem, de pronto, descerram-se cortinas, acendem-se as luzes e aparecem, à volta da mesa, o padre, o banqueiro e o engravatado presidente de Câmara. Esperam, olhando fixamente uma espécie de crustáceo negro: um telefone. A mão invisível e negra que marca a história. Se há resistência, há que marcar o número do posto das forças da ordem.

Em 1848, a família De Tocqueville, espavorida, ouvia, do salão do seu enorme apartamento sobre o Sena, os disparos dos insurrectos, nos subúrbios. Chamaram a criada para que fechasse as janelas e a criada, ouvindo os disparos das espingardas, cada vez mais perto, sorriu. O senhor De Tocqueville expulsou-a, de imediato, do salão, da casa e do posto de trabalho. Sabia perfeitamente o que significava aquele sorriso. Era o sorriso do fantasma.

Um fantasma percorre as redacções, os postos de comando, os executivos dos partidos do regime: é o fantasma do poder popular. As pessoas souberam transformar o seu mal-estar em desejo de unidade e mudança, em capacidade programática, e dispõem-se a tomar o poder. Dispõem-se a fazê-lo e, além disso, sem imitar os gestos, o tom, a roupagem do poder de sempre. As pessoas compreenderam que podem, que sabem governar, que se atrevem a isso e os do regime, espavoridos, compreendem que, mesmo fechando as portadas dos apartamentos, não há força que possa dissuadir as pessoas das suas satânicas pretensões.

Chama-lhe unidade popular, chama-lhe frente ampla, bloco social, unidade política, concreção das convergências sociais… ou, se quiseres, chama-lhe poder popular. Podes, inclusive, falar de frente popular. O certo é que, neste momento histórico, não há pretextos, não há desvios, circunlóquios. A saída da crise só tem duas portas: ou se mantém o regime e a marca branca do neoliberalismo (viram-nos, em Itália, todos com camisa branca?), ou se abre caminho à saída constituinte, democrática, anticapitalista. Que não há maturidade suficiente? É possível: não existe, em Espanha, um demasiado amplo sentido comum anticapitalista. Mas, ou nos lançamos, e lançamo-nos agora, ou o regime organiza os próximos 30 anos sobre a resignação, a divisão e o entreguismo. Assim que se deu a conhecer a possibilidade de uma estratégia de “frente popular”, não só saltaram como molas todos os centros nevrálgicos, que não conseguiram evitar editoriais e clamores de medo, como começou, também, a funcionar o grande batalhão do transformismo mediático.

Gramsci falou do transformismo como operação através da qual o poder, o antigo domínio, coopta, para a sua hegemonia, antigos intelectuais revolucionários, com a missão de integrar, convencer, reduzir, resignar, os batalhões inquietos, através de uma prosa equidistante, sibilina, sedutora. Pois bem, todos/as se puseram ao trabalho de uma só vez. Talvez alguns, depois de tomar um café na bodeguilla [N.T.] respectiva. Mas, não é necessário receber orientações excessivamente explícitas. Basta um gesto, um riso no momento certo, a ridicularização dos pobres (sem gravata), o assinalar dos dogmáticos que não são capazes de perdoar uma derrota histórica, a classificação de “comunistas” com uma displicente sacudidela de mão, própria do senhor De Tocqueville.

E, atenção, não se trata de dizer, agora, que não entenderam nada. Entenderam, sim. Entenderam perfeitamente do que se trata. Simplesmente, o medo começou a mudar de campo e não é preciso arranjar uma gravata para ostentar não se sabe que respeitabilidade, no momento de conquistar o poder e governar através de uma revolução democrática. Eles entenderam isso e as pessoas entenderam que eles entenderam. E é tudo. Agora a história segue o seu curso, esse (glorioso) sujeito histórico que, num dado momento, pode derrubar governos e, até, monarcas recém-recauchutados.

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[N.T.] Cave de vinhos. A da Moncloa, palácio presidencial, ficou conhecida por, aí, Felipe González organizar festas e tertúlias com artistas e intelectuais.

* Doutor em Filologia Românica. Escritor e Professor jubilado da Universidade de Jaén.

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