O QUE ELES ESCONDEM

sábado, 17 de janeiro de 2015


Em Portugal, os partidos de esquerda, PCP e BE, apresentaram, em 2012, no Parlamento, propostas de renegociação e auditoria da dívida pública (Ver em http://www.cadpp.org/node/346 ), rejeitadas com os votos da direita, PS, PSD e CDS. Neste artigo de Eric Toussaint, o que é dito em relação à dívida da Grécia aplica-se, com poucas diferenças, à de Portugal. Um trabalho preliminar à auditoria da dívida portuguesa pode ser consultado aqui.


E se o Syriza pega na palavra da EU e faz uma auditoria à dívida da Grécia?

Por  Eric Toussaint*

Desde o anúncio de eleições na Grécia, para o dia 25 de Janeiro de 2015, a possibilidade de que o Syriza saia vitorioso das urnas e forme governo tem sido apresentado à opinião pública internacional, particularmente, à da eurozona, como uma ameaça. Contudo, aqueles que fazem soar o alarme sabem perfeitamente que o Syriza anunciou que não suspenderá o pagamento da dívida, nem sairé do euro, se chegar ao governo. O Syriza propõe uma renegociação da dívida à escala europeia e deseja que a Grécia permaneça na eurozona. Em contrapartida, o Syriza compromete-se a pôr fim às medidas de austeridade, injustas e antissociais, implementadas pelos anteriores governos e pela Troika.
Esta campanha sobre as supostas ameaças que o Syriza representa pretende intimidar o eleitorado grego, com o objectivo de que renuncie ao seu direito à mudança. De igual modo, pretende pôr uma parte da opinião pública europeia contra a coligação de esquerda radical grega, para tentar evitar que, a seguir, o Podemos, em Espanha, possa ganhar as eleições, em Outubro de 2015.
A dívida reclamada à Grécia representa 175% da riqueza produzida no país, num ano, e supõe um lastro insustentável para o povo heleno.
Que acontecerá se o Syriza, uma vez no governo, decida levar à letra o artigo 7, de um regulamento adoptado, em Maio de 2013, pela União Europeia, para os países submetidos a um plano de ajustamento estrutural? Eis o texto completo do ponto 9, do citado artigo 7: “Um Estado membro, submetido a um programa de ajustamento macro-económico, efectuará uma auditoria exaustiva das suas finanças públicas, a fim de, entre outras coisas, avaliar as razões pelas quais se incorreu em níveis excessivos de endividamento e detectar qualquer possível irregularidade.” (1)
O governo de Antonis Samaras absteve-se de aplicar esta disposição do regulamento, para ocultar à população grega os verdadeiros motivos do aumento da dívida e as irregularidades correspondentes. Em Novembro de 2012, o Parlamento, dominado pela direita, havia recusado a moção, apresentada pelo Syriza, para a criação de uma comissão de investigação sobre a dívida, com 167 votos contra, 119 a favor e nenhuma abstenção.
Está claro que, depois de uma vitória eleitoral do Syriza, o governo que se forme sob a sua liderança poderia, perfeitamente, pegar na palavra da União Europeia, ao constituir uma comissão de auditoria à dívida (com participação cidadã), com o propósito de analisar o processo de endividamento excessivo da Grécia, para revelar as possíveis irregularidades e identificar as partes que forem ilegais, ilegítimas, odiosas… dessa dívida.

Alguns elementos-chave que a realização da auditoria poderia trazer à luz:

A dívida grega, que representa 113% do PIB, em 2009, antes do rebentar da crise no país e da intervenção da Troika, que possui 4/5 dessa dívida, passou para 175% do PIB, em 2014. Portanto, à intervenção da Troika seguiu-se um forte aumento da dívida grega.
A partir de 2010 e até 2012, os créditos concedidos pela Troika à Grécia serviram, em grande parte, para reembolsar, durante esse período, os credores, a saber, os bancos comerciais das principais economias da EU, começando pelas entidades alemãs e francesas (2). Cerca de 80% da dívida grega, em 2009, estava nas mãos de bancos comerciais de países da EU. Entre eles, só os bancos alemães e franceses tinham cerca de 50% do total dos títulos públicos gregos.
Uma auditoria da dívida grega mostrará que os bancos comerciais europeus aumentaram intensamente os seus créditos à Grécia, entre finais de 2005 e 2009 (os créditos foram incrementados em mais de 60 mil milhões de euros, passando de 80 mil milhões para 140 mil milhões), sem considerarem a capacidade da Grécia para os devolver. Os bancos actuaram de maneira temerária, convencidos de que as autoridades europeias viriam em seu auxílio, em caso de problema.
A auditoria da dívida grega mostrará que o pressuposto plano de resgate à Grécia, posto em prática pelas autoridades europeias com a ajuda do FMI, permitiu, na realidade, que os bancos de alguns países europeus, com peso decisivo nas instâncias europeias, continuem a receber os reembolsos da Grécia, transferindo o risco para os Estados, através da Troika. Não foi a Grécia a resgatada, mas um punhado de grandes bancos comerciais europeus, implantados principalmente nos países mais fortes da EU.
A auditoria analisará a legitimidade do plano de resgate. Estará ele conforme com os tratados da EU (principalmente o artigo 125, que proíbe um Estado-membro encarregar-se dos compromissos financeiros de outros Estados-membro)? Os prestamistas públicos, em 2010 (isto é, os 14 Estados-membro que concederam empréstimos à Grécia, num total de 53 mil milhões de euros, o FMI, o BCE, a Comissão Europeia, etc.) respeitaram o princípio de autonomia da vontade de quem pede emprestado, a saber, a Grécia? Ou beneficiaram-se da sua angústia perante os ataques especulativos dos mercados financeiros, para lhe impor contratos que vão contra o seu próprio interesse? Estes prestamistas impuseram condições leoninas, sobretudo ao exigir taxas de juro exageradas? (3)
Trata-se, por isso, de auditar a acção do FMI. Sabemos que, no seio da direção do Fundo, vários directores executivos (em especial, o do Brasil e o da Suíça) mostraram grandes reservas quanto ao empréstimo acordado pelo FMI, afirmando, sobretudo, que a Grécia não seria capaz de o devolver, dadas as políticas que lhe eram impostas. (4)

Ultrapassou o BCE, de maneira grave, as prerrogativas, ao exigir ao Parlamento grego que legislasse sobre o direito de greve e a fixação dos níveis salariais?

Em Março de 2012, a Troika organizou uma reestruturação da dívida grega, que foi apresentada, na altura, como um êxito. Recordemos que o então primeiro-ministro Yorgos Papandreu anunciou, no início de Novembro de 2011, na véspera de uma reunião do G-20, a sua intenção de convocar um referendo, para Fevereiro de 2012, sobre essa reestruturação da dívida, preparada pela Troika. Perante a pressão desta, esse referendo jamais teve lugar e retirou-se o direito ao povo grego de se prenunciar sobre as novas dívidas. Os grandes meios de comunicação fizeram eco do discurso de que a reestruturação permitia reduzir a dívida grega em 50%. Na realidade, esta dívida é maior em 2015 do que em 2011, o ano prévio à grande anulação dos supostos 50%. A auditoria mostrará que esta operação de reestruturação, que constitui uma vasta fraude, estava vinculada ao aprofundamento das políticas contrárias ao interesse da Grécia e da sua população.
A auditoria deverá avaliar se as estritas condições impostas pela Troika à Grécia, como contrapartida dos créditos, constitui uma violação de uma séria de tratados e convenções, que têm de ser respeitados, tanto pelos credores, como pelo devedor, a Grécia. O professor de Direito, Andreas-Fischer-Lescano, representando a Câmara de Trabalho de Viena, demonstrou, de modo irrefutável, que os programas da troika são ilegais à luz do direito europeu e do direito internacional. As medidas definidas nos programas de ajustamento, a que a Grécia foi submetida, e as políticas concretas, que são consequência directa disso, violam uma série de direitos fundamentais, como o direito à saúde, à educação, à habitação, à Segurança Social, a um salário justo, mas também à liberdade de associação e à negociação colectiva. Todos estes direitos estão protegidos por numerosos textos jurídicos à escala internacional e europeia, como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Convénio Europeu dos Direitos Humanos, a Carta Social Europeia, os dois pactos da ONU sobre Direitos Humanos, a Carta das Nações Unidas…
A auditoria deverá demonstrar que as medidas ditadas pelos credores constituem regressões manifestas ao exercício dos direitos humanos fundamentais e uma violação flagrante de uma série de tratados. Podem ser identificadas importantes irregularidades. Consequentemente, a comissão encarregada da auditoria poderá emitir uma opinião argumentada acerca da legalidade, da ilegitimidade e, inclusive, da nulidade da dívida contratada pela Grécia com a Troika. 

(1)          Regulamento (EU) Nº 472/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Maio de 2013, sobre o reforço da supervisão económica e orçamental dos Estados-membro da zona do euro, cuja estabilidade financeira experimenta ou corre o risco de experimentar graves dificuldades. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2013:140:0001:0010:ES:PDF

(2)          RMF “The Eurozone between austerity and default”, 2010. http://www.researchonmoneyandfinance.org/index.php/publication/eurozone-reports/33-second-rmf-report-on-the-eurozone-crisis-eurozone-between-austerity-and-default, Ver também Éric Toussaint “Grecia-Alemania: ¿Quién debe a quién? (2) Los acreedores protegidos y el pueblo griego sacrificado”. Publicado el 11 de octubre de 2012, http://cadtm.org/Grecia-Alemania-Quien-debe-a-quien,8423  

(3)          As taxas de juro exigidas, que eram de 4% a 5,5%, em 2010-2011, foram reduzidas para cerca de 1%, em 2012, perante os protestos surgidos em diferentes lugares (incluindo o governo irlandês, ao qual foi imposto, também, uma taxa de juro muito elevada, no final de 2010). Ao reduzir consideravelmente as taxas de juro, os 14 Estados reconheceram, de facto, que as taxas anteriormente exigidas eram exageradas. Em 2010-2011, os juros pagos pela Grécia à França elevaram-se a 437 milhões de euros. Ver http://www.assemblee-nationale.fr/13/pdf/rapports/r2857-tI.pdf 


 
*Doctor em Ciências Políticas; Porta-voz do CADTM internacional;  Auditor da dívida do Equador em 2007-2008. Autor de Bancocracia.

Texto original publicado em 12.01.15, no Público.es

 

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