Mentiras obscenas
No final do Verão, o Presidente Obama anunciou a sua decisão de atacar a
Síria, acusando o seu governo dum ataque com armas químicas. O discurso de
Obama (10.9.13) não admitia dúvidas: «no dia 21 de Agosto [...] o governo de
Assad matou com gases mil pessoas, incluindo centenas de crianças. […] Sabemos
que o regime de Assad é responsável». O MNE Kerry desdobrou-se em pormenores
«comprovativos». A comunicação social de regime estava em «frenesim de guerra»
e o «socialista» Hollande chegou a dar ordens para começar o ataque na
madrugada de 1 de Setembro (Nouvel Observateur, 29.9.13) . Foi uma
(inacabada) versão B da obscena telenovela de Bush, Blair e Barroso.
Dois peritos norte-americanos, Postol (do MIT) e Lloyd
(ex-inspector armamentista da ONU) afirmam agora (relatório de 14 de Janeiro)
que «não é possível que [o gás sarin] tenha sido disparado a partir da zona
controlada pelo governo sírio indicada no mapa dos serviços secretos publicado
pela Casa Branca a 30 de Agosto de 2013». Também o canal noticioso oficial
alemão, Deutsche Welle noticia o estudo e acrescenta (18.1.14): «esta conclusão
não é inteiramente nova. Há um mês, um inspector armamentista da ONU, Ake
Sellström, também questionou a versão dos EUA sobre a atrocidade». O canal
russo RT (16.1.14) cita Postol: «quando comecei este processo, a minha opinião
era que só podia ser o governo sírio que estava por detrás do ataque. Mas hoje
já não tenho a certeza de nada. A narrativa do governo [dos EUA] nem sequer se
aproxima da realidade». Sem imputar responsabilidades pelo ataque, Lloyd
acrescenta: «os rebeldes têm seguramente a capacidade para criar este tipo de
armas, talvez até tenham mais capacidade do que o governo sírio». O mesmo
afirma Seymour Hersh (London Review of Books, 19.12.13), jornalista famoso
pela sua denúncia do massacre de My Lai na guerra do Vietname: «o exército
sírio não é a única parte na guerra civil do país com acesso ao sarin».
Para evitar o ataque Hollande-Obama, o governo sírio aceitou
um «acordo» que impôs o seu desarmamento unilateral de armas químicas, mas não
impôs nada aos «rebeldes» e seus múltiplos padrinhos externos, ou ao vizinho
israelita (para se defender do qual o regime tinha as armas químicas). Mas o
próprio processo de desarmamento químico, no qual Paulo Portas quis envolver o
nosso país, é uma saga obscena. As potências bélicas, sempre prontas para
ataques militares, querem lavar o mais possível as mãos do processo. As armas
já foram embaladas e transportadas até ao porto sírio de Latakia pelo exército
sírio com auxílio russo. O transporte marítimo para fora da Síria é assegurado
por países nórdicos, pela Rússia e China. Mas nenhum país está disposto a
acolher e destruir as armas no seu território: a França, a Bélgica e a Noruega
recusam. Em Novembro lembraram-se da Albânia! Após dias de manifestações de
protesto nas ruas, o sempre dócil governo albanês foi obrigado a recusar
(Telegraph, 18.11.13). E assim, ganha forma a ideia (Telegraph, 9.1.14)
de as armas químicas serem levadas para o Sul de Itália, trasladadas para bordo
dum navio civil dos EUA (da US Maritime Administration do
Ministério dos Transportes), onde militares dos EUA procederão à sua
decomposição, sendo os compostos menos tóxicos «destruídos por uma companhia
comercial» em Inglaterra e os mais tóxicos… despejados em pleno Mediterrâneo. A
julgar pelo mapa que acompanha a notícia do Telegraph, algures ao largo
de costas PIGS: Itália, Grécia, Líbia. Se as garantias de segurança são como as
garantias de culpa do governo sírio, os motivos de preocupação são sérios.
Jorge Cadima, in Avante!, 23
/ 1 /2014
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