O QUE ELES ESCONDEM

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014


O QUE NÃO SE DIZ SOBRE AS CAUSAS DA GRANDE RECESSÃO
 Por Vicenç Navarro*

O título deste artigo poderá surpreender o leitor, visto ter-se já escrito tanto sobre as causas da crise, que pareceria que tudo foi dito e escrito. Pois, não, não se disse e não se publicou tudo. Na realidade, muito pouco se disse ou se publicou, nos maiores fóruns de informação e persuasão, sobre as causas reais do que se chama a Grande Recessão. Espero que, no final deste artigo, entenda a razão pela qual se falou muito pouco sobre este assunto.

Três são as causas da Grande Recessão. Uma, sobre a qual se escreveu bastante, é a do crescimento do capital financiero, isto é, das instituições como a banca, as companhias de seguros e outras, cujo negócio se baseia em manejar dinheiro. A outra causa, relacionada com a anterior, é a desregulamentação deste capital financiero e, muito especialmente, o do sector bancário, que criou o que, correntemente, foi definido como “capitalismo de casino”, quer dizer, baseado na especulação. Esta desregulamentação foi dada como parte de uma cultura desreguladora, que afectou outras actividades económicas, como a desregulamentação do comércio. Disto, também, se tem falado extensamente.

Mas, do que não se tem falado é precisamente do que há por detrás do aumento do crescimento do capital financiero ou do que se chama financeirização da economía e da sua deriva especulativa. Esta ignorada ou desconhecida ou, inclusive, ocultada causa é nem mais nem menos do que o enorme crescimento das desigualdades de rendimento, na maioria dos países, definidos como países avançados económicamente – básicamente, os da OCDE, o clube dos países mais ricos do mundo.

E, aquí, o leitor vai permitir que explique o que quer dizer “o aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos, num país”. Comecemos, primeiramente, com o conceito de “distribuição de rendimentos”. Os rendimentos (o dinheiro que a gente recebe) podem proceder do trabalho (predominantemente, através dos salários) ou da propriedade do capital, isto é, propriedade como, por ex., acções, que geram rendimentos. Pois bem, a distribuição dos rendimentos é o factor determinante para entender a evolução económica (e, também, política) de um país.

A maioria da população recebe os seus rendimentos do trabalho. Daí que, quando estes rendimentos diminuem (e podem diminuir devido a várias circunstâncias, como a diminuição dos salários e/ou do número de pessoas que trabalha e/ou do aumento do desemprego), a procura de produtos e serviços e a respectiva produção de produtos e serviços também diminue, com o qual a economía sofre uma descida, que é o que se chama recessão.

A “descoberta” desta relação entre a diminuição da procura e a crise económica atribuí-se, geralmente, ao famoso economista Keynes, o que não é, de modo nenhum, verdadeiro. Na realidade, e o leitor ficará surpreendido se souber que foi Karl Marx –  visto com muito maus olhos, em Espanha -  quem já o tinha indicado, quando disse, no seu libro mais conhecido, O Capital, que a acumulação de capital, à custa do trabalho, levaria às crises do capitalismo. Mas, mais que Karl Marx, quem desenvolveu mais esta teoría foi um dos seus seguidores, M. Kalecki, quem, por sua vez, influenciou dois dos melhores economistas do nosso tempo, Joan Robinson e o meu amigo Paul Sweezy, nenhum dos quais, evidentemente, recebeu o prémio Nobel de Economia. Em vez deles, os prémios Nobel de Economia (financiados pela banca escandinava) eran entregues a ultraliberais como Robert Lucas, que escreveu que analisar os temas de distribuição de rendimentos era prejudicial e perigoso (“uma das tendências perniciosas e prejudiciais no conhecimento económico… na realidade, venenosa para tal conhecimento, é o estudo de temas de distribuição”. The Industrial Revolution: Past and Future). Não é necessário dizer que Lucas era um economista super próximo do capital, que não quer ouvir falar de redistribuição de rendimentos. Autores como Lucas e outros economistas neoliberais continuam a ter muito boa aceitação, não só nos círculos académicos espanhóis, mas também na imprensa, em geral.

Porquê a financiarização da economía?

Vejamos: quando as pessoas não têm dinheiro, pedem-no emprestado. Isso explica o grande crescimento da banca. O tremendo endividamento das famílias espanholas, assim como das médias e pequenas empresas (que são as que mais criam emprego em Espanha), debe-se, precisamente, à diminuição dos rendimentos do trabalho. Quanto maior é a diminuição das primeiras, maior é o crescimento da segunda (já para não falar de outros factores que também intervêm, como a maior ou menor disponibilidade de crédito. Mas isto não explica por si só o enorme crescimento do endividamento).

E os dados falam por si próprios. Os rendimentos do trabalho como percentagem do PIB baixaram, em Espanha, de 68%, na década de oitenta, para 62%, na primeira década do séc. XXI. Nos EUA, durante o mesmo período, baixaram de 68% para 65%. Algo parecido acontece una maioria dos países da OCDE, embora o grau de descida e a percentagem variem consideravelmente. Mas, até em países nórdicos, como a Suécia, a descida, mesmo quando menor, foi de 71% para 69%. A Espanha, juntamente com a Grécia (que passou de 67% para 60%), a Itália (de 68% para 65%) e a Irlanda (de 70% para 55%), foram dos países em que a percentagem do rendimento do trabalho no PIB era mais baixo e aqueles em que mais baixou (Eckhard Hein, “Finance-dominated Capitalism and Income Distribution. Implications for an ‘Agenda of Shared Prosperity’”) Em todos eles os rendimentos do trabalho baixaram rapidamente à custa do incremento das rendas do capital. Esta é a realidade, ignorada, desconhecida ou ocultada. E não é casualidade, certamente, que a Grécia, Irlanda, Itália e Espanha sejam os países onde a Grande Recessão foi mais acentuada (ver o meu artigo “Capital-Trabajo: el origen de la crisis actual”, Le Monde Diplomatique, julho de 2013). É nestes países onde o problema da procura é maior e, portanto, a recessão é também maior.

Por que razão aumentou a especulação financeira?

Esta descida do peso do rendimento do trabalho pode não se traducir na descida da procura se a capacidade aquisitiva da população não descer como consequência de conseguir pedir emprestado dinheiro para continuar a comprar os productos e serviços de que necesita. Isto é, o crédito ( que a banca lhe proporciona) pode manter a procura. Mas, até certo ponto. E aí está a raíz do problema. A procura persiste, mas vai caindo, e com ela a actividade económica. E isso pode representar um problema, inclusive para o mundo do capital, pois, se não há suficiente procura, as fábricas produzem menos e os proprietários podem conseguir menos lucros. Aquilo a que se chama a “rentabilidade do capital” fica afectada quando a procura baixa. Daí que quem tem muito dinheiro não vai investir no que se chama economia produtiva (quer dizer, em produtos e serviços), mas em áreas onde a rentabilidade seja maior, tais como as actividades especulativas,por exemplo, no sector imobiliário. É assim que se produz a enorme explosão de bolhas especulativas, facilitada pela desregulamentação da banca. Claro que toda a bolha, por definição, explode. E quando explode, a banca colapsa ou paralisa, o crédito desaparece e a economía colapsa,pois, sem crédito, a procura também colapsa, já que os salários, cada vez mais baixos, sem crédito, não a podem manter. E aí surge a Grande Depressão. A enorme concentração da riqueza criou a Grande Recessão, da mesma maneira que antes, nos principios do século XX, criou a Grande Depressão.

E porque houve esta concentração de riqueza?

Uma vez que se entendam as causas da crise, as soluções são bastante fáceis. Com o risco de pecar por imodéstia, asseguro-vos que a grande maioria dos meus estudantes da disciplina de Políticas Públicas e Sociais da UPF-Hopkins, ao terminar os seus estudos,sabem como resolver a crise. As soluções não são difíceis de ver, do ponto de vista científico: inverter as políticas públicas que se têm desenvolvido, a maioria desde o período de 1980 até agora, mudando o signo destas intervenções, favorecendo os rendimentos do trabalho, em vez das rendimentos do capital. Isto implica uma importante redistribuição  das rendas do país, diminuindo os rendimentos do capital – incluindo a substituição do capital por outras formas de propriedade, em muitas áreas da economía – e aumentando os rendimentos do trabalho.

A solução para sair da crise é um aumento notável dos rendimentos do trabalho (com base no aumento dos salários, da ocupação e do emprego) e uma descida da do capital. E, como acabo de dizer, com uma notável redução, não só do espaço do capital financiero, mas também da sua propriedade e comportamento, eliminando, por exemplo, o carácter especulativo do capital privado, substituindo-o no caso da banca, por capital público. Não tem sentido, por exemplo, que a banca privada consiga empréstimos baratíssimos do Banco Central Europeu (BCE), que é uma entidade pública, para que, a seguir, os bancos privados emprestem esse dinheiro a juros altíssimos às autoridades públicas (como o Estado) ou às empresas. É muito mais eficiente e justo eliminar o intermediário – a banca privada – e que o BCE empreste aos Estados directamente e que estes emprestem à população e às empresas directamente (ver o meu artigo “Uma das mil razões para estar indignados”. El Plural, 13.01.14) E, como parte desta solução, diminuir o grande leque salarial (que tem aumentado entre a população assalariada), impedindo que os salários mais altos sejam, como agora, obscenamente altos, sem nenhuma relação com a produtividade. E, muito importante, terminar com a “beneficência” à banca, que foi a que mais beneficiou da generosidade estatal.

Pois bem, que isso aconteça ou não, depende de causas políticas. Para que aconteça, é necessário uma mudança profunda nas relações de poder, incluindo as relações de poder de classe, em que uma minoria controla a maioria das instituições mediáticas e políticas dos países da OCDE, impondo as políticas ultraliberais que estão prejudicando enormemente a população
 
Artigo publicado na revista digital SISTEMA, em 24 de Janeiro de 2014

*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige o Observatório Social de Espanha.

Sítio do autor: www.vnavarro.org








 

 

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