O QUE NÃO SE DIZ SOBRE AS CAUSAS DA
GRANDE RECESSÃO
O título deste artigo poderá surpreender o leitor, visto ter-se já escrito
tanto sobre as causas da crise, que pareceria que tudo foi dito e escrito.
Pois, não, não se disse e não se publicou tudo. Na realidade, muito pouco se
disse ou se publicou, nos maiores fóruns de informação e persuasão, sobre as
causas reais do que se chama a Grande Recessão. Espero que, no final deste
artigo, entenda a razão pela qual se falou muito pouco sobre este assunto.
Três são as causas da Grande Recessão. Uma, sobre a qual se escreveu
bastante, é a do crescimento do capital financiero, isto é, das instituições
como a banca, as companhias de seguros e outras, cujo negócio se baseia em
manejar dinheiro. A outra causa, relacionada com a anterior, é a desregulamentação
deste capital financiero e, muito especialmente, o do sector bancário, que
criou o que, correntemente, foi definido como “capitalismo de casino”, quer
dizer, baseado na especulação. Esta desregulamentação foi dada como parte de
uma cultura desreguladora, que afectou outras actividades económicas, como a
desregulamentação do comércio. Disto, também, se tem falado extensamente.
Mas, do que não se tem falado é precisamente do que há por detrás do
aumento do crescimento do capital financiero ou do que se chama financeirização
da economía e da sua deriva especulativa. Esta ignorada ou desconhecida ou,
inclusive, ocultada causa é nem mais nem menos do que o enorme crescimento das
desigualdades de rendimento, na maioria dos países, definidos como países
avançados económicamente – básicamente, os da OCDE, o clube dos países mais
ricos do mundo.
E, aquí, o leitor vai permitir que explique o que quer dizer “o aumento das
desigualdades na distribuição de rendimentos, num país”. Comecemos,
primeiramente, com o conceito de “distribuição de rendimentos”. Os rendimentos
(o dinheiro que a gente recebe) podem proceder do trabalho (predominantemente,
através dos salários) ou da propriedade do capital, isto é, propriedade como,
por ex., acções, que geram rendimentos. Pois bem, a distribuição dos
rendimentos é o factor determinante para entender a evolução económica (e,
também, política) de um país.
A maioria da população recebe os seus rendimentos do trabalho. Daí que,
quando estes rendimentos diminuem (e podem diminuir devido a várias circunstâncias,
como a diminuição dos salários e/ou do número de pessoas que trabalha e/ou do
aumento do desemprego), a procura de produtos e serviços e a respectiva
produção de produtos e serviços também diminue, com o qual a economía sofre uma
descida, que é o que se chama recessão.
A “descoberta” desta relação entre a diminuição da procura e a crise
económica atribuí-se, geralmente, ao famoso economista Keynes, o que não é, de
modo nenhum, verdadeiro. Na realidade, e o leitor ficará surpreendido se souber
que foi Karl Marx – visto com muito maus
olhos, em Espanha - quem já o tinha
indicado, quando disse, no seu libro mais conhecido, O Capital, que a acumulação de capital, à custa do trabalho,
levaria às crises do capitalismo. Mas, mais que Karl Marx, quem desenvolveu
mais esta teoría foi um dos seus seguidores, M. Kalecki, quem, por sua vez,
influenciou dois dos melhores economistas do nosso tempo, Joan Robinson e o meu
amigo Paul Sweezy, nenhum dos quais, evidentemente, recebeu o prémio Nobel de
Economia. Em vez deles, os prémios Nobel de Economia (financiados pela banca
escandinava) eran entregues a ultraliberais como Robert Lucas, que escreveu que
analisar os temas de distribuição de rendimentos era prejudicial e perigoso
(“uma das tendências perniciosas e prejudiciais no conhecimento económico… na
realidade, venenosa para tal conhecimento, é o estudo de temas de
distribuição”. The Industrial Revolution:
Past and Future). Não é necessário dizer que Lucas era um economista super
próximo do capital, que não quer ouvir falar de redistribuição de rendimentos.
Autores como Lucas e outros economistas neoliberais continuam a ter muito boa
aceitação, não só nos círculos académicos espanhóis, mas também na imprensa, em
geral.
Porquê a financiarização da
economía?
Vejamos: quando as pessoas não têm dinheiro, pedem-no emprestado. Isso
explica o grande crescimento da banca. O tremendo endividamento das famílias espanholas,
assim como das médias e pequenas empresas (que são as que mais criam emprego em
Espanha), debe-se, precisamente, à diminuição dos rendimentos do trabalho.
Quanto maior é a diminuição das primeiras, maior é o crescimento da segunda (já
para não falar de outros factores que também intervêm, como a maior ou menor
disponibilidade de crédito. Mas isto não explica por si só o enorme crescimento
do endividamento).
E os dados falam por si próprios. Os rendimentos do trabalho como
percentagem do PIB baixaram, em Espanha, de 68%, na década de oitenta, para
62%, na primeira década do séc. XXI. Nos EUA, durante o mesmo período, baixaram
de 68% para 65%. Algo parecido acontece una maioria dos países da OCDE, embora
o grau de descida e a percentagem variem consideravelmente. Mas, até em países
nórdicos, como a Suécia, a descida, mesmo quando menor, foi de 71% para 69%. A
Espanha, juntamente com a Grécia (que passou de 67% para 60%), a Itália (de 68%
para 65%) e a Irlanda (de 70% para 55%), foram dos países em que a percentagem
do rendimento do trabalho no PIB era mais baixo e aqueles em que mais baixou
(Eckhard Hein, “Finance-dominated Capitalism and Income Distribution.
Implications for an ‘Agenda of Shared Prosperity’”) Em todos eles os
rendimentos do trabalho baixaram rapidamente à custa do incremento das rendas
do capital. Esta é a realidade, ignorada, desconhecida ou ocultada. E não é
casualidade, certamente, que a Grécia, Irlanda, Itália e Espanha sejam os
países onde a Grande Recessão foi mais acentuada (ver o meu artigo
“Capital-Trabajo: el origen de la crisis actual”, Le Monde Diplomatique, julho de 2013). É nestes países onde o
problema da procura é maior e, portanto, a recessão é também maior.
Por que razão aumentou a especulação
financeira?
Esta descida do peso do rendimento do trabalho pode não se traducir na
descida da procura se a capacidade aquisitiva da população não descer como
consequência de conseguir pedir emprestado dinheiro para continuar a comprar os
productos e serviços de que necesita. Isto é, o crédito ( que a banca lhe
proporciona) pode manter a procura. Mas, até certo ponto. E aí está a raíz do
problema. A procura persiste, mas vai caindo, e com ela a actividade económica.
E isso pode representar um problema, inclusive para o mundo do capital, pois,
se não há suficiente procura, as fábricas produzem menos e os proprietários
podem conseguir menos lucros. Aquilo a que se chama a “rentabilidade do
capital” fica afectada quando a procura baixa. Daí que quem tem muito dinheiro
não vai investir no que se chama economia
produtiva (quer dizer, em produtos e serviços), mas em áreas onde a
rentabilidade seja maior, tais como as actividades especulativas,por exemplo,
no sector imobiliário. É assim que se produz a enorme explosão de bolhas
especulativas, facilitada pela desregulamentação da banca. Claro que toda a
bolha, por definição, explode. E quando explode, a banca colapsa ou paralisa, o
crédito desaparece e a economía colapsa,pois, sem crédito, a procura também
colapsa, já que os salários, cada vez mais baixos, sem crédito, não a podem
manter. E aí surge a Grande Depressão. A enorme concentração da riqueza criou a
Grande Recessão, da mesma maneira que antes, nos principios do século XX, criou
a Grande Depressão.
E porque houve esta concentração de
riqueza?
Uma vez que se entendam as causas da crise, as soluções são bastante
fáceis. Com o risco de pecar por imodéstia, asseguro-vos que a grande maioria
dos meus estudantes da disciplina de Políticas Públicas e Sociais da
UPF-Hopkins, ao terminar os seus estudos,sabem como resolver a crise. As
soluções não são difíceis de ver, do ponto de vista científico: inverter as
políticas públicas que se têm desenvolvido, a maioria desde o período de 1980
até agora, mudando o signo destas intervenções, favorecendo os rendimentos do
trabalho, em vez das rendimentos do capital. Isto implica uma importante
redistribuição das rendas do país,
diminuindo os rendimentos do capital – incluindo a substituição do capital por
outras formas de propriedade, em muitas áreas da economía – e aumentando os
rendimentos do trabalho.
A solução para sair da crise é um aumento notável dos rendimentos do
trabalho (com base no aumento dos salários, da ocupação e do emprego) e uma
descida da do capital. E, como acabo de dizer, com uma notável redução, não só
do espaço do capital financiero, mas também da sua propriedade e comportamento,
eliminando, por exemplo, o carácter especulativo do capital privado,
substituindo-o no caso da banca, por capital público. Não tem sentido, por
exemplo, que a banca privada consiga empréstimos baratíssimos do Banco Central
Europeu (BCE), que é uma entidade pública, para que, a seguir, os bancos
privados emprestem esse dinheiro a juros altíssimos às autoridades públicas
(como o Estado) ou às empresas. É muito mais eficiente e justo eliminar o
intermediário – a banca privada – e que o BCE empreste aos Estados directamente
e que estes emprestem à população e às empresas directamente (ver o meu artigo
“Uma das mil razões para estar indignados”. El Plural, 13.01.14) E, como parte
desta solução, diminuir o grande leque salarial (que tem aumentado
entre a população assalariada), impedindo que os salários mais altos sejam,
como agora, obscenamente altos, sem nenhuma relação com a produtividade. E,
muito importante, terminar com a “beneficência” à banca, que foi a que mais
beneficiou da generosidade estatal.
Pois bem, que isso aconteça
ou não, depende de causas políticas. Para que aconteça, é necessário uma
mudança profunda nas relações de poder, incluindo as relações de poder de
classe, em que uma minoria controla a maioria das instituições mediáticas e
políticas dos países da OCDE, impondo as políticas ultraliberais que estão
prejudicando enormemente a população
Artigo publicado na revista
digital SISTEMA, em
24 de Janeiro de 2014
*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige o Observatório Social de Espanha.
Sítio do autor: www.vnavarro.org
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