O QUE ELES ESCONDEM

segunda-feira, 28 de julho de 2014


 
O PODER POPULAR NA VENEZUELA

Por Lídia Falcón*
 
Se alguma vez pode ter êxito a democracia participativa, a gestão directa do povo nos assuntos que mais lhe diz respeito, é, hoje, na Venezuela. Os textos legais falam-nos de criar Comunas, a partir da eleição dos Conselhos Comunais. Os Comités administram directamente os temas que os afectam. A Lei Orgânica dos Conselhos Comunais, cujos primeiros passos são dados pela mão do Ministério del Popular para la Agricultura y Tierras, em Fevereiro de 2008, afirma: “Pelo que, no marco legal da Constituição da República Bolivariana de Venezuela, se promove a participação do povo na formação, execução e controle da gestão pública, com o objectivo de cumprir um duplo propósito, representado pelo exercício da democracia da forma mais directa e protagónica possível e conseguir a interiorização individual e colectiva do projecto político de desenvolvimento nacional, dentro dos princípios de soberania, autogestão e solidariedade como meio único para garantir o completo desenvolvimento individual e colectivo das comunidades”.
E acrescenta: “Pelo que... se promove a actuação, a distribuição vertical do poder público, incorporando o poder popular, representado por comunidades organizadas, comunas, conselhos comunais, conselhos de trabalhadores, conselhos estudantis, conselhos de camponeses, conselhos de artesãos, conselhos de pescadores, conselhos desportivos e outras organizações locais que, através da sua participação protagónica, exerçam funções de co-gestão que sirvam para optimizar o desenvolvimento das funções próprias dos entes públicos com o objectivo de concretizar os fins do Estado.”

A Comunidade é o núcleo espacial básico e indivisível, constituído por pessoas e famílias, que habitam num determinado âmbito geográfico, vinculadas por características e interesses comuns. Ali, reunem-se as organizações comunitárias, os comités de trabalho e os e as porta-vozes que coordenam o funcionamento do Conselho Comunal. A Assembleia de Cidadãos e Cidadãs é o órgão máximo de organização e decisão do Conselho Comunal.
E tudo isso e nada menos que isso é o que estão tentando fazer. Porque o mais interessante, e tantas vezes emocionante, é observar a realidade quotidiana da actuação dos homens e das mulheres implicados nesta experiência.

O projecto de um socialismo autogerido não ficou apenas nos discursos de Chávez. A maioria do povo acreditou e está a pô-lo em prática. Percorri as Comunas já criadas, falei com os porta-vozes dos Conselhos Comunais, assisti às reuniões de mulheres da rede de organizações feministas, La Araña Feminista, conheci a escola de formação feminista Argelia laya, participei na assembleia e debate em celebração do Dia do Trabalho Doméstico, que estava abarrotada de gente – já que vários homens também participaram -, e fui convidada para a III Assembleia Nacional do Conselho Consultivo do Poder Popular das Mulheres e Igualdade de Género, à qual assistiram 120 organizações de mulheres de todo o país.
E visitei o mítico Bairro 23 de Janeiro, onde homens e mulheres construíram, de raiz, uma cidade, que eles e elas dirigem, organizam, produzem, com um entusiasmo que, para mim, tinha ficado perdido na lembrança de militância dos anos heróicos contra a ditadura espanhola e na Transição.

O envolvimento dos operários e das operárias, das donas de casa, dos moradores e dirigentes de bairro, na construção de casas, na criação de pequenos negócios, na organização e solidariedade na ajuda aos mais necessitados, é exemplar. São tantos os entusiastas, as dirigentes de vanguarda, as militantes nos diversos aspectos da organização das Comunas, que seriam precisos muitos dias para falar com eles. Com total liberdade. Ninguém vigia os nossos passos, as nossas visitas às Freguesias, aos Conselhos Comunais, nem com quem, nem de quê se fala com os homens e mulheres que nos recebem, nem intervem nas entrevistas.
Foram criados rádios e televisões comunais, que emitem para um território extenso e, sobretudo, estão ligados pela Internet. Os programas são desenhados pelos próprios comuneros. Moças muito inexperientes ainda, que estão a aprender, locutores amadores e alguns mais veteranos informam sobre a realidade quotidiana dos seus vizinhos. Sem que alguém controle ou censure o que ali se diz. Nenhum dirigente governamental aparece nesses meios de comunicação a supervisar os programas e, quando convidados, são submetidos a entrevistas incómodas e, sobretudo, a exigências quanto ao que está por fazer.

Pode-se criar uma Comuna, em qualquer território, freguesia, povoação, cidade, convocando uma assembleia, como estabelece a lei. A reunião de vários Conselhos Comunais formará uma Comuna. Um Ministério de Comunas limita-se a proporcionar recursos para as iniciativas que vão surgindo. A Directora Geral desse Ministério, María Inés Novas, desculpa-se a todo o momento pela burocracia inevitável, ao mesmo tempo que estimula todos os seus colaboradores a participar na criação do Poder Popular nos lugares mais recônditos do país.
O mais insólito é que, em quiosques, lojas, pequenos triciclos onde se vende arepas e sumos, em restaurantes e hotéis, estão à vista, nos balcões, folhas para que os vizinhos e clientes assinem a solitação de criação do Conselho Comunal e poder-se, assim, constituir uma Comuna. E o mais surpreendente, e enternecedor, é que, em várias vendas ambulantes, em livrarias, papelarias, lojas de diversos produtos, se vendem cópias impressas em papel vulgar, presas com um agrafo, da Constituição Venezuelana, da Lei do Processo Social do Trabalho, da Habitação, da Protecção dos Menores, do Poder Comunal, dos Conselhos Comunais, da Educação, da Saúde, da Por uma Vida Livre de Violência para as Mulheres, isto é, toda a colecção legislativa que tem sido aprovada, no país, nos últimos quinze anos, por um preço ridículo, para que os mais modestos trabalhadores as comprem... e as leiam. O governo insere anúncios na televisão, insistindo para que as pessoas se organizem na sua própria Comuna ou Conselho Comunal. E elas fazem-no, e, além disso, discutem as leis e quando vão às assembleias e às reuniões com o governo, citam-nas em apoio das suas reivindicações.

Na III Assembleia do Conselho Consultivo das Mulheres, foram distribuídas dezenas de cópias da Lei por uma Vida Livre de Violência para as Mulheres, que as participantes aceitavam avidamente e levavam consigo. Pude constatar que muitas a liam ou já tinham lido. Os venezuelanos e as venezuelanas não se consideram à margem do corpo legislativo do seu país. É constante o pedido que as ministras e vice-ministras fazem, nos actos públicos, às mulheres, aos moradores, aos comuneros, para que assumam o protagonismo e a direcção política e social dos assuntos que lhes interessam.
Se, em alguns momentos, os governantes se queixam, é da apatia de alguns sectores. É totalmente novo e surpreendente para uma espanhola que os e as participantes nos actos públicos se dirijam aos ministros para apresentar as suas reivindicações, que, além disso, entregam por escrito a uma responsável do Ministério, que as recolhe e assegura que vai tê-las em conta.

São muitas mais as atribuições que o povo tem no processo de construção do Poder Popular, que deve ser quem controla e exige ao poder político a boa execução do mandato que aquele lhe deu.
É evidente que, na Venezuela, é possível construir um socialismo popular. Tudo depende da actuação dos colectivos sociais, se os críticos, os indiferentes e os hostis os deixarem viver e trabalhar em paz. Coisa que os inimigos não costumam fazer.

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O texto original encontra-se em http://blogs.publico.es/lidia-falcon/2014/07/26/el-poder-popular-en-venezuela/?src=lmlp

 
* Lidia Falcón O’Neill é licenciada em Direito, em Arte Dramática e Jornalismo e Doutora em Filosofia. Fundadora do Partido Feminista de Espanha. Participou no Tribunal Internacional de Crimes contra a Mulher, de Bruxelas. Colabora em vários jornais e revistas, em Espanha e nos EUA. Tem uma extensa obra publicada e traduzida em várias línguas, nos campos do ensaio, narrativa e poesia.

 

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