O tsunami anti-social na Europa
Por Vicenç Navarro*
É evidente que as políticas
públicas neoliberais (que incluem a desregulamentação dos mercados laborais e
financeiros, a redução dos salários, a redução e, inclusive, a eliminação da
protecção social e a privatização das transferências e serviços públicos do
Estado de Bem-estar) levadas a cabo por partidos governantes conservadores, democrata-cristãos,
liberais e socio-liberais (incluindo um grande número de partidos governantes
social-democratas) estão a levar a União Europeia e a Eurozona ao desastre
económico e social. Estas políticas, promovidas e impostas pelo eixo Bruxelas
(a Comissão Europeia), Berlim (a coligação presidida por Angel Merkel) e
Frankfurt (o Banco Central Europeu), conhecido ironicamente como “o eixo do
rigor”, estão a lesar enormemente o bem-estar da população e a arruinar a
economia, além de desmantelar os Estados de Bem-estar de cada país, debilitando
a Europa social. A evidência disto é sólida e convincente.
O relatório mais recente
acerca deste assunto é o da Cáritas, organização católica, intitulado A crise europeia e o seu custo Humano,
que analisa a situação social da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. O
relatório documenta como os cortes na despesa pública afectaram muito
negativamente os grupos com rendimentos mais baixos das classes populares,
aumentando o seu mal-estar e desemprego (muito em especial entre os jovens). O
relatório documenta também o crescimento das taxas de suicídio, de pobreza, de
exclusão social, de stress social e de viver sem tecto. Como sublinha o
relatório, a crise está a afectar os grupos mais vulneráveis, que menos
responsabilidade tiveram no despoletar e desenvolvimento da crise, precisamente
nos países com menor protecção social e desenvolvimento menor do seu Estado de
Bem-estar, tais como Espanha.
Daí a conclusão do relatório
de que “O que está a acontecer é profundamente injusto”. Dos serviços públicos
mais afectados, o relatório Cáritas cita os serviços de saúde públicos, cuja
qualidade se deteriorou, dificultando o acesso à prestação de cuidados aos
grupos mais vulneráveis.
O enorme dano que estas
políticas públicas estão a causar às classes populares.
Estes estudos confirmam
outros mais académicos, como o bem conhecido trabalho de David Stuckler e
Sanjay Basu, intitulado The Body
Economic: Why Austerity Kills, onde se calcula que mais de 10.000 suicídios
adicionais são devidos às consequências dos cortes na Europa (e nos EUA). As
revistas médicas Lancet e British Medical Journal alertaram,
igualmente, para os impactos negativos das políticas de austeridade na saúde e
bem-estar das populações. Todos os
estudos académicos credíveis sobre este tema apoiam as conclusões da Cáritas:
“As políticas de austeridade não estão funcionando e uma alternativa é
necessária”.
Outros estudos documentaram,
também, o impacto negativo que o desemprego e a baixa generalizada dos salários
estão a ter na população, tendo sido responsáveis pelo crescimento da pobreza e
da exclusão social. Assim, para a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
estas políticas foram as responsáveis por o desemprego ter crescido para 116
milhões de pessoas, na UE (representando uma taxa de desemprego de 24%) A OIT
informa que, como resultado das ditas políticas, existem, hoje, 800.000
crianças mais em situação de pobreza do que há cinco anos. A OIT indica que, se
se continuar por este caminho, a Europa terá, em breve, 15 a 20 milhões mais de
pobres do que no presente. Inclusivamente, o Employment Committee do Parlamento
Europeu publicou outro relatório, onde acusa a Troika (o Fundo Monetário
Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) e os Ministros da
Economia e Finanças da UE de estarem a criar um tsunami anti-social. Conclusão
semelhante aparece noutro relatório, este do Comissário dos Assuntos Sociais da
própria Comissão, sublinhando que este desastre social está a prejudicar o
desenvolvimento económico da UE.
Por que razão estas
políticas continuam a ser aplicadas?
Uma resposta credível que se
tem dado a esta pergunta é a de que os elementos de decisão da União Europeia,
o Conselho Europeu, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, estão
controlados por personagens de ideologia neoliberal, que têm uma visão alheia e
distante da realidade. Os documentos destas instituições transbordam optimismo,
sublinhando que as políticas de austeridade estão a ter um impacto muito
favorável no desenvolvimento económico e na recuperação dos países que as
desenvolvem, incluindo os países periféricos da Eurozona. Um dos porta-vozes do
“eixo do rigor” é o conhecido liberal Olli Rehn, o Comissário europeu para os
Assustos Económicos e Monetários, membro do grupo liberal europeu, ao qual
pertencem os partidos liberais espanhóis como o CDC, C’s e UpyD, que têm
promovido e aplicado estas políticas, com o apoio do grupo conservador, ao qual
pertencem o PP e Unió Democràtica, que comungam o credo liberal. Esta ideologia
domina também o Banco Central Europeu e o governo Merkel. Todos os seus
documentos apresentam uma Europa que não existe, irreal, assinalando
erroneamente que as políticas de austeridade estão a funcionar e, portanto, que
a Europa já está fora da crise.
O argumento de que a
persistência destas polítcas (que deram um resultado tão negativo) se deve ao
domínio ideológico do neoliberalismo é válido, mas requere outra pergunta que
devemos fazer: por que razão a ideologia dominante é a neoliberal? A resposta é
que esta ideologia serve os interesses financeiros e económicos que dominam a
UE. Na realidade, os ditos interesses, através desses partidos políticos,
impuseram (com toda a opacidade e sem transparência) umas regras (como o Pacto
Orçamental, que proíbe, na prática, os Estados de estar em défice), que não
podem ser mudadas e condenam a UE a ter que seguir essas políticas, continuando
a causar um enorme dano às classes populares.
Perante esta situação,
requere-se uma mobilização geral frente ao “eixo do rigor”, exigindo o seu
desaparecimento, por serem organismos antidemocráticos e ilegais. Sou
consciente de que tal proposta será imediatamente descartada como utópica e
irrealizável, percepção que é sempre promovida quando a estrutura do poder é
questionada. Na realidade, um número crescente de associações europeias chama a
atenção para a violação sistemática das leis aprovadas pelo Parlamento Europeu
e pelos Parlamentos nacionais por parte do “eixo do rigor”. A aprovação do
Pacto Orçamental deu-se, em vários países, incluindo Espanha, com enorme
opacidade, sempre na sombra, e grande aleivosia. E tudo isso nas costas do
próprio Parlamento Europeu. Vários sindicatos europeus denunciaram as
constantes violações da Carta Social Europeia e o Conselho da Europa documentou
a frequente violação dos direitos humanos, que está a acontecer na UE, violação
implícita nas políticas impostas pelo “eixo do rigor”. Esta rebelião, que,
indubitavelmente, se estenderá a todo o território europeu, deveria incluir
actos de desobediência civil que tivessem como objectivo a democratização das
instituições europeias, sem excluir a alternativa de os Estados se separarem da
dita União, sozinhos ou colectivamente, se as mudanças não são factíveis. A
situação social na Europa e, em particular, nos países periféricos, é
intolerável.
_______
*
Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de
Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona.
É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore,
EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e
Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns
Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.
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