O QUE ELES ESCONDEM

domingo, 13 de julho de 2014


O tsunami anti-social na Europa

Por Vicenç Navarro*

É evidente que as políticas públicas neoliberais (que incluem a desregulamentação dos mercados laborais e financeiros, a redução dos salários, a redução e, inclusive, a eliminação da protecção social e a privatização das transferências e serviços públicos do Estado de Bem-estar) levadas a cabo por partidos governantes conservadores, democrata-cristãos, liberais e socio-liberais (incluindo um grande número de partidos governantes social-democratas) estão a levar a União Europeia e a Eurozona ao desastre económico e social. Estas políticas, promovidas e impostas pelo eixo Bruxelas (a Comissão Europeia), Berlim (a coligação presidida por Angel Merkel) e Frankfurt (o Banco Central Europeu), conhecido ironicamente como “o eixo do rigor”, estão a lesar enormemente o bem-estar da população e a arruinar a economia, além de desmantelar os Estados de Bem-estar de cada país, debilitando a Europa social. A evidência disto é sólida e convincente.
O relatório mais recente acerca deste assunto é o da Cáritas, organização católica, intitulado A crise europeia e o seu custo Humano, que analisa a situação social da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. O relatório documenta como os cortes na despesa pública afectaram muito negativamente os grupos com rendimentos mais baixos das classes populares, aumentando o seu mal-estar e desemprego (muito em especial entre os jovens). O relatório documenta também o crescimento das taxas de suicídio, de pobreza, de exclusão social, de stress social e de viver sem tecto. Como sublinha o relatório, a crise está a afectar os grupos mais vulneráveis, que menos responsabilidade tiveram no despoletar e desenvolvimento da crise, precisamente nos países com menor protecção social e desenvolvimento menor do seu Estado de Bem-estar, tais como Espanha.

Daí a conclusão do relatório de que “O que está a acontecer é profundamente injusto”. Dos serviços públicos mais afectados, o relatório Cáritas cita os serviços de saúde públicos, cuja qualidade se deteriorou, dificultando o acesso à prestação de cuidados aos grupos mais vulneráveis.
O enorme dano que estas políticas públicas estão a causar às classes populares.

Estes estudos confirmam outros mais académicos, como o bem conhecido trabalho de David Stuckler e Sanjay Basu, intitulado The Body Economic: Why Austerity Kills, onde se calcula que mais de 10.000 suicídios adicionais são devidos às consequências dos cortes na Europa (e nos EUA). As revistas médicas Lancet e British Medical Journal alertaram, igualmente, para os impactos negativos das políticas de austeridade na saúde e bem-estar das populações. Todos os estudos académicos credíveis sobre este tema apoiam as conclusões da Cáritas: “As políticas de austeridade não estão funcionando e uma alternativa é necessária”.
Outros estudos documentaram, também, o impacto negativo que o desemprego e a baixa generalizada dos salários estão a ter na população, tendo sido responsáveis pelo crescimento da pobreza e da exclusão social. Assim, para a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estas políticas foram as responsáveis por o desemprego ter crescido para 116 milhões de pessoas, na UE (representando uma taxa de desemprego de 24%) A OIT informa que, como resultado das ditas políticas, existem, hoje, 800.000 crianças mais em situação de pobreza do que há cinco anos. A OIT indica que, se se continuar por este caminho, a Europa terá, em breve, 15 a 20 milhões mais de pobres do que no presente. Inclusivamente, o Employment Committee do Parlamento Europeu publicou outro relatório, onde acusa a Troika (o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) e os Ministros da Economia e Finanças da UE de estarem a criar um tsunami anti-social. Conclusão semelhante aparece noutro relatório, este do Comissário dos Assuntos Sociais da própria Comissão, sublinhando que este desastre social está a prejudicar o desenvolvimento económico da UE.

Por que razão estas políticas continuam a ser aplicadas?
Uma resposta credível que se tem dado a esta pergunta é a de que os elementos de decisão da União Europeia, o Conselho Europeu, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, estão controlados por personagens de ideologia neoliberal, que têm uma visão alheia e distante da realidade. Os documentos destas instituições transbordam optimismo, sublinhando que as políticas de austeridade estão a ter um impacto muito favorável no desenvolvimento económico e na recuperação dos países que as desenvolvem, incluindo os países periféricos da Eurozona. Um dos porta-vozes do “eixo do rigor” é o conhecido liberal Olli Rehn, o Comissário europeu para os Assustos Económicos e Monetários, membro do grupo liberal europeu, ao qual pertencem os partidos liberais espanhóis como o CDC, C’s e UpyD, que têm promovido e aplicado estas políticas, com o apoio do grupo conservador, ao qual pertencem o PP e Unió Democràtica, que comungam o credo liberal. Esta ideologia domina também o Banco Central Europeu e o governo Merkel. Todos os seus documentos apresentam uma Europa que não existe, irreal, assinalando erroneamente que as políticas de austeridade estão a funcionar e, portanto, que a Europa já está fora da crise.

O argumento de que a persistência destas polítcas (que deram um resultado tão negativo) se deve ao domínio ideológico do neoliberalismo é válido, mas requere outra pergunta que devemos fazer: por que razão a ideologia dominante é a neoliberal? A resposta é que esta ideologia serve os interesses financeiros e económicos que dominam a UE. Na realidade, os ditos interesses, através desses partidos políticos, impuseram (com toda a opacidade e sem transparência) umas regras (como o Pacto Orçamental, que proíbe, na prática, os Estados de estar em défice), que não podem ser mudadas e condenam a UE a ter que seguir essas políticas, continuando a causar um enorme dano às classes populares.
Perante esta situação, requere-se uma mobilização geral frente ao “eixo do rigor”, exigindo o seu desaparecimento, por serem organismos antidemocráticos e ilegais. Sou consciente de que tal proposta será imediatamente descartada como utópica e irrealizável, percepção que é sempre promovida quando a estrutura do poder é questionada. Na realidade, um número crescente de associações europeias chama a atenção para a violação sistemática das leis aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelos Parlamentos nacionais por parte do “eixo do rigor”. A aprovação do Pacto Orçamental deu-se, em vários países, incluindo Espanha, com enorme opacidade, sempre na sombra, e grande aleivosia. E tudo isso nas costas do próprio Parlamento Europeu. Vários sindicatos europeus denunciaram as constantes violações da Carta Social Europeia e o Conselho da Europa documentou a frequente violação dos direitos humanos, que está a acontecer na UE, violação implícita nas políticas impostas pelo “eixo do rigor”. Esta rebelião, que, indubitavelmente, se estenderá a todo o território europeu, deveria incluir actos de desobediência civil que tivessem como objectivo a democratização das instituições europeias, sem excluir a alternativa de os Estados se separarem da dita União, sozinhos ou colectivamente, se as mudanças não são factíveis. A situação social na Europa e, em particular, nos países periféricos, é intolerável.

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 * Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.

 

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