O QUE ELES ESCONDEM

terça-feira, 12 de agosto de 2014


A FALTA DE RIGOR DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: A ARGENTINA NÃO ESTÁ EM SUSPENSÃO DE PAGAMENTOS CONVENCIONAL

Por Eduardo Garzón*
1 de Agosto de 2014
 
Durante toda a quinta-feira passada, foi difundida muita interpretação referente ao episódio que o Estado da Argentina está a viver, enfrentando a pressão judicial de alguns fundos abutres. A complexidade do assunto, a falta de profundidade em muitas notícias e reportagens, a confusão de alguns jornalistas no momento de escrever sobre temas que não conhecem muito bem e, inclusive a pouca simpatia que muitos grandes meios de comunicação têm pelo governo da Argentina, contribuíram para criar uma narrativa inexacta, que dá lugar a muita desorientação. A Argentina não entrou em default ou em suspensão de pagamentos, pelo menos não da forma convencional, referente à capacidade de pagar as suas dívidas. Se o Estado argentino não pagou uma parte da sua divida, isso deve-se a um conflito judicial e político, e não porque não tenha suficiente dinheiro para o fazer (que é o que se depreende ao ler a maioria das notícias que povoa os grandes meios de comunicação). Mas comecemos pelo princípio.
Após a grave crise de 2001 e depois da enorme dívida que o Estado argentino havia contraído, o governo de Néstor Kirchner negociou a sua reestruturação, em 2005 (que teria um segundo episódio, em 2010). Esta reestruturação consistia no seguinte: por cada 100 dólares que o Estado argentino devia aos seus credores, só seriam devolvidos 35 dólares. Evidentemente, esta era uma fórmula que beneficiava muito o Estado, porque, assim, pagaria menos e, portanto, aliviaria o peso da sua dívida pública. Para os credores (bancos e outros agentes financeiros) supunha registar bastantes perdas, porque receberiam menos dinheiro que o emprestado, mas, mesmo assim, a imensa maioria aceitou o acordo: preferiam que se lhes devolvesse menos dinheiro a que não se lhes devolvesse nada.

Contudo, 7% dos credores não aceitou a oferta do governo argentino, porque queriam recuperar todo o dinheiro emprestado. Estes credores são conhecidos como holdouts, isto é, os que ficam fora do acordo. A única forma de recuperar todo o dinheiro emprestado é por via judicial, processando o Estado argentino, por ter vulnerado os seus compromissos de pagamento, confiando em que algum tribunal do planeta sentencie a favor dos queixosos e obrigue o Estado a devolver o dinheiro emprestado, mais a penalização correspondente.
É a este tipo de actuação que se dedicam, profissionalmente, os fundos abutres, que são fundos de capital de alto risco, geridos por entidades financeiras. Estes gestores, que movimentam importantes quantidades de dinheiro, dispõem de equipas profissionais de advogados que conhecem todas as artimanhas e contam com todos os recursos necessários para ganhar, nos tribunais, os processos que levam a cabo contra empresas e Estados. A sua actuação não se limita apenas ao âmbito judicial, mas também a diferentes métodos de pressão – que vão desde embargos, operações de lóbi e campanhas na imprensa, desprestigiando os Estados devedores. A denominação de abutre deve-se ao facto de atacarem empresas e Estados que têm dificuldade de pagamento, com o objectivo de obter suculentos lucros (por exemplo, em 1996, o fundo abutre Elliott Management Corp gastou 11 milhões de dólares num processo contra o Estado do Peru, mas a vitória que obteve nos tribunais rendeu-lhe 58 milhões de dólares).

Desde então, os fundos abutres têm estado a processar o Estado argentino, em vários tribunais. Primeiro  na Bélgica e, depois, na Alemanha, onde a justiça não lhes deu razão. Mas, recentemente, a justiça estado-unidense (muito mais permissiva com as “liberdades” económicas) decidiu a favor destes fundos. Visto que o fundo abutre, que lidera o litígio, reclama 1.500 milhões de dólares, o juiz ordenou o congelamento dessa quantia, numa conta que o Estado argentino detém no banco estado-unidense Bank of New York Mellon. O objectivo é o de o Estado argentino não poder movimentar nem um dólar dessa conta até pagar ao fundo abutre. O problema é que, nessa conta, há dinheiro destinado aos outros credores que haviam aceitado a reestruturação da dívida argentina (isto é, que não são holdouts). E, no dia 31 de Julho, terminava o prazo para que a Argentina devolvesse 539 milhões de dólares a esses credores. Dado que o congelamento do dinheiro impediu isso, esses credores ficaram sem receber. Tecnicamente, trata-se de uma suspensão de pagamentos selectiva (porque não é geral, não se tendo pagado a uns credores em concreto), e daí a descida de rating, iniciada pela Standar and Poor’s e continuada pelas outras grandes agências de notação. Mas, o importante é entender que foi uma suspensão de pagamentos forçada, já que a Argentina tem o dinheiro, mas não pode movimentá-lo, por ordem judicial estado-unidense.

O Estado argentino poderia ter evitado a suspensão de pagamentos selectiva, se tivesse pagado esses 1.500 milhões de dólares aos fundos abutres. Se o dinheiro da conta tivesse sido libertado, poderia ter pagado aos outros credores. Mas, não quis fazê-lo, por duas razões: a primeira é que não considera  justo que assim seja, por muito que o diga a justiça estado-unidense. A segunda é que fazê-lo abriria um precedente para que os restantes holdouts se vissem animados e com mais força a continuar com processos até obter o que querem. O Estado argentino escolheu rebelar-se contra os fundos abutres e a justiça estado-unidense e, por isso, vai recorrer ao tribunal internacional de Haya. O custo disto é o dano que a propaganda mediática inflige na credibilidade do governo argentino. Em menos de 24 horas, a imensa maioria dos meios de comunicação lançaram-se na difusão de que a Argentina tinha entrado em suspensão de pagamentos, sem explicar muito bem o que isto era, dando a entender quer o país sofria enormes problemas para pagar as suas dívidas. A má intenção desta informação é evidente e responde aos numerosos e diversos interesses económicos e políticos, que procuram o descrédito de um governo argentino, que decidiu rebelar-se, há já muito tempo, contra o poder abusivo da elite financeira.
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* Licenciado em Economia e em Administração e Direcção de Empresas. Membro do Conselho Científico de ATTAC – Espanha.


 

 

 

 

 

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