O QUE ELES ESCONDEM

segunda-feira, 4 de agosto de 2014


O CONTEXTO POLÍTICO DA MÚSICA

Por Vicenç Navarro*

Em artigos anteriores, acentuei a surpresa que me produz a falta de canções nas manifestações que há em Espanha contra as políticas impopulares, impostas pelos partidos governantes. Ao longo da minha vida, tive que viver em vários países (Suécia, Reino Unido e EUA), participando frequentemente em mobilizações que exigiam direitos sociais, políticos e laborais. Em todas elas, os participantes cantavam canções celebrando situações ou eventos que haviam inspirado lutas anteriores e estabelecendo, assim, uma linha de continuidade com causas anteriores. E mais, ao cantar conjuntamente, a multidão estabelecia um sentimento de solidariedade e de sentir colectivo, irmanando-se através da emotividade. Em Espanha, pelo contrário, não há canções nas mobilizações. Em seu lugar, há apitos e assobios que parecem  ter por objectivo fazer barulho, alguns francamente desagradáveis, inclusive para os próprios manifestantes.
Estas notas introdutórias servem como prólogo aos comentários que me sugere o livro Venceremos, escrito por Gabriel San Román, sobre a canção como arma política, referindo-se à experiência chilena. Um dos maiores privilégios que tive na minha vida foi o de assessorar (nas suas reformas do sistema de saúde) o governo de Unidade Popular, presidido pelo Presidente Allende. Daí que tenha tido sempre uma atenção especial para o que acontece naquele país.

A experiência da Nueva Canción chilena
No livro, San Ramón assinala a importância que as canções populares tiveram para manter uma cultura de compromisso e militância, que levou à vitória da Unidade Popular. Na realidade, a Nueva Canción, com raízes na velha canção chilena, teve um impacto enorme, não só no Chile, mas em todo o continente latino-americano. Esta Nueva Canción foi iniciada por cantautores como Violeta Parra (1917-1967), que viajaram por todo o Chile, incluindo as partes mais remotas do país, recolhendo as canções populares, fruto das lutas constantes do campesinato e do movimento operário contra a contínua opressão. Aquelas canções refectiam um sentimento de dedicação e compromisso, como parte de um sonho que os povos desejavam, lutando para que se convertesse em realidade. Eram cantos ao amor, à esperança, à solidariedade e à liberdade.

Esta pesquisa e elaboração das canções enraízadas na cultura popular ocorreu nos anos 50 e 60, estimulada, nesta última década, pelo desejo de contrariar a invasão de Elvis Presley e The Beatles na América Latina, procedentes dos EUA e da Europa. Era necessário e urgente – diz San Román – que se desenvolvesse uma canção identitária, que contrariasse a invasão anglo-saxónica. Surgiram, assim, Inti-Illimani e Quilapayún, que se estenderam pela  América Latina e por todo o mundo. Era uma música comprometida, revolucionária, não só no estilo, mas também no conteúdo e contexto.
A importância de desenvolver uma cultura musical própria e alternativa

Foi nos anos setenta quando a Nueva Canción se converteu no laço que unia socialistas, comunistas e cristãos de esquerda, no Chile, aliança que jugou um papel chave na vitória do governo de Unidade Popular. Víctor Jara foi o seu cantautor principal. E o governo sentiu-se completamente identificado com esta cultura. Na realidade, era um produto dela. O fortalecimento das classes populares significou uma grande ameaça para as forças reaccionárias que controlavam o país. E a Nueva Canción era claramente um inimigo. Daí a brutal repressão, assassinando os seus máximos expoentes, como o próprio Víctor Jara. E a ditadura começou com a sua brutal e sangrenta campanha de tentativa de eliminação – como ocorreu em Espanha – da esquerda e forças progressistas.
O interessante é que esta Nueva Canción se converteu, de novo, na tentativa de recuperar a memória histórica, de uma maneira espontânea, a nível popular, que apareceu sem apoio governamental, quando a ditadura terminou. Em Espanha, os governos democráticos abandonaram, também, qualquer tentativa de recuperar a cultura republicana e a cultura popular, que existiram, igualmente, durante a resistência antifascista. O desinteresse por esta recuperação da parte dos diferentes governos, incluindo os Ministros da Cultura (Jorge Semprún, inclusive), é escandaloso. E é esta a situação. Nas marchas reivindicativas, apitos e mais apitos, e nenhuma canção. Na realidade, aquela cultura é menosprezada, encarada como “política” e/ou “ideológica”. E, entretanto, as canções de distracção e irrelevantes dominam o panorama musical do país.

______
O original deste artigo encontra-se em http://www.vnavarro.org/?p=11152 

* Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário