O QUE ELES ESCONDEM

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


QUE DIFERENÇA HÁ (OU DEVERIA HAVER) ENTRE POLÍTICAS DE ESQUERDA E DE DIREITA

Por Vicenç Navarro*

Existe uma percepção generalizada, nos maiores meios de informação e na cultura geral do país, de que a divisão das sensibilidades políticas se baseia nas políticas que se propõem relativamente ao Estado e ao sector público. Assume-se que a esquerda está a favor da intervenção do Estado e da expansão do sector público e que a direita está a favor do mercado e do sector privado. É característico das forças conservadoras e neoliberais (aquilo a que, em Espanha, incluindo a Catalunha, se chama direita) acusar a esquerda de “estatalismo” e de depender excessivamente do Estado e da despesa pública. Pareceria, à primeira vista, que os dados facilitam esta percepção. Uma das características da esquerda tem sido a sua maior sensibilidade social, traduzida no seu maior apoio, por exemplo, aos gastos públicos sociais.
Mas, se olharmos com maior pormenor para a relação do Estado com, por exemplo, a economia, vemos, rapidamente, que esta percepção não se justifica. Uma das maiores intervenções do Estado que vimos nestes últimos anos foi precisamente a maciça ajuda financeira do Estado à banca, às companhias de seguros e ao sector imobiliário, o que, na cultura anglossaxónica se chama FIRE, incêndio, em inglês, e que resulta de juntar as primeiras letras de Finance (Finanças), Insurance (Seguradoras) e Real Estate (Imobiliárias). Nunca se tinha visto, na história recente, tanto apoio público (ou, empregando uma terminologia que a direita utiliza, beneficência) a um grupo social como ao capital financeiro, que inclui, em lugar proeminente, a banca.

A direita não é anti-Estado
Na realidade, em todas as sociedades capitalistas, o Estado joga um papel fundamental dentro de cada sector da actividade económica. Nos Estados Unidos, uma das administrações que se consideram e autodefiniram como mais liberais – a administração presidida pelo senhor Reagan – foi uma das mais intervencionistas que jamais houve na história dos EUA (desde o fim da 2ª Guerra Mundial). A despesa pública, durante o seu mandato, aumentou como não havia aumentado sob nenhuma outra administração e a intervenção estatal aumentou enormemente, reforçando, ainda mais, o papel central que o Estado tem na economia dos Estados Unidos (o presidente Reagan foi quem mais subiu a despesa militar, depois da 2ª Guerra Mundial).

Desconhece-se, na Europa, que o Estado Federal dos Estados Unidos é o Estado que tem a política industrial mais avançada de todos os países da OCDE. E fá-lo através da despesa militar, que tem um papel-chave na economia daquele país. E a todos os níveis. Desde a internet até ao telemóvel (e muitos mais equipamentos de tecnologia electrónica e de comunicação), estão todos baseados no conhecimento, gerado e financiado com fundos públicos, de carácter militar. A Apple não existiria se não tivesse existido o Departamento de Defesa, que financiou a investigação básica, que a Apple utilizou e comercializou mais tarde. E acontece o mesmo numa maioria dos novos desenvolvimentos elecrónicos.

Parte deste aumento da despesa pública militar fez-se, também, à custa de cortes na despesa pública social. Os dados estão aí para quem quiser ver. O tema-chave, pois, não é Estado sim ou Estado não, ou despesa pública sim ou não, mas a quem é que o Estado serve. Hoje, a evidência é esmagadora: o Estado está profundamente influenciado pelo capital financeiro (banca, companhias de seguros, hedge funds e uma longa lista de instrumentos que manejam dinheiro), assim como pelos interesses de uma minoria da população, que obtém os seus recursos da propriedade do capital, que gera rendas, incluindo os proprietários e gestores do grande capital, seja este financeiro, industrial ou de serviços.

Qual deveria ser a linha divisória entre a esquerda e a direita?

Fazer esta pergunta é perguntar o que é que existe no capitalismo que dificulta e/ou obstaculiza o desenvolvimento humano. E o ponto-chave não é tanto o tipo de propriedade (pública ou privada), mas o objectivo da dita propriedade e da sua função e objectivo. No capitalismo existente, a propriedade tem como objectivo principal proporcionar lucros ao seu proprietário, o qual tem o poder de definir o dito objectivo, objectivo que pode ou não servir o bem comum. Quando os banqueiros, no intuito de optimizar os seus lucros, desenvolvem as práticas especulativas que criaram a crise financeira, arruinando a vida e o bem-estar da população, estavam a actuar segundo o princípio capitalista de pôr a acumulação de capital, os proprietários do capital, como o seu objectivo principal, sem considerar os malefícios para a sociedade. O que aconteceu mostra claramente o erro de antepor o objectivo da acumulação de capital acima do bem comum. Este é um dos maiores problemas existentes no capitalismo.
As diferentes tradições socialistas (chamem-se socialistas, social-democratas, comunistas ou anarco-sindicalistas) caracterizaram-se, precisamente, por se identificarem com a luta para conseguir o bam-estar da população e, muito especialmente, das classes populares, pondo a propriedade ao serviço do bem comum. Este bem comum exige pôr o bem-estar d população como objectivo final, mediante o contributo necessário, segundo os meios e os recursos de cada um. O famoso preceito “de cada um segundo a sua capacidade e a cada um segundo a sua necessidade” é um princípio que sintetiza muito bem a ética e cultura de esquerda e sublinha que o objectivo da economia, por exemplo, não é a acumulação de capital, mas o desenvolvimento do potencial de cada ser humano, respondendo às suas necessidades.

A democracia como objectivo
Agora, a outra diferença está na identificação de quem define estas necessidades. De novo, a direita crê que é o cliente, através do mercado, quem define estas necessidades. O mercado é quem configura o carácter e uso da propriedade. A esquerda, historicamente, considerou que deveria ser a própria população, não individualmente através do mercado, mas, colectivamente, através das instituições democráticas, quem definia essas necessidades. A consequência disso é, em geral, a esquerda, nos países democráticos, ter sido mais sensível e exigente no desenvolvimento das instituições democráticas do que a direita. Em Espanha, o exemplo disso é claro e a evidência contundente. E isso deve-se a que o compromisso que a direita tem com o objectivo da propriedade (aumentar a acumulação de capital) entra em conflito com o princípio democrático. O capitalismo dificulta e, inclusive, impossibilita o desenvolvimento da democracia,pois a concentração de capital determina a captura das instituições democráticas (e os meios de informação e persuação) por parte deste capital, tal como estamos a ver, hoje, claramente, em Espanha e na União Europeia. Olhe-se como se olhar, a acumulação do capital torna impossível ou limita a expressão democrática. Os Estados Unidos, o país com maior influência do capital e com maiores desigualdades, é dos países menos democráticos (mais de metade dos congressistas são milionários). E, por outro lado, os países escandinavos com menores desigualdades são os que têm uma maior expressão democrática.

E isto leva-me ao último ponto da diferença entre a esquerda e a direita: a definição do significado de democracia e a sua expressão política. Hoje, a imensa maioria das esquerdas, nos países com elevado nível de desenvolvimento económico, não baseia a sua estratégia no assalto ao Palácio de Inverno, no ano A, dia D, hora H, pelo partido revolucionário armado, pois aceitam a via democrática. Mas, há muitas maneiras de interpretar a democracia. A mais generalizada é a via representativa, que se expressa através das instituições representativas (os parlamentos, como máxima expressão), baseando-se no princípio de que cada cidadão deve ter a mesma capacidade decisória na governação do país, expressa através de processos eleitorais. Um voto, igualmente determinante, para cada cidadão. O maior problema com essa via é que, praticamente em nenhum sistema democrático, o dito princípio é aplicado. Quase não existem sistemas parlamentares autenticamente proporcionais. E isso não acontece por acaso. Quanto maior é a influência do capital, menor é a proporcionalidade, pois o objectivo do capital é diminuir, por todos os meios possíveis, esse princípio democrático. Os EUA e Espanha, com o seu bipartidismo (que favorece sempre a direita), são claros exemplos disso.
Democracia não é só votar de quatro em quatro anos

Mas, outra limitação do sistema representativo, além da falta de diversidade mediática (limitada pela enorme influência do capital), é a tendência para a profissionalização da política e o aparecimento de uma classe política, que age no seu próprio interesse e reduz a política à “politiquice entre as elites governantes dos partidos”, limitando a participação cidadã ao voto de quatro em quatro anos. A democracia representativa, inclusive a proporcional, é insuficiente. Requere-se, além da democratização da democracia representativa, a democracia directa, através da participação activa dos cidadãos, constante e directamente, não só na governação do país, mas, também, na gestão dos locais de trabalho, dos bairros, dos locais de ócio e onde quer que existam actividades colectivas. E isto não quer dizer (como, maldosamente, a direita diz) “estatalismo”, mas participação cidadã. Os referendos (direito a decidir), uma das formas de democracia directa mais comum, devem ser utilizados, amplamente, em qualquer sistema democrático, em todos os níveis de governo. Democracia e bem-estar e qualidade de vida são, pois, as duas dimensões-chave que deveriam definir a esquerda. Democracia como fim e democracia como estratégia.
Haverá, sem dúvida, uma enorme resistência por parte do Estado, influenciado enormemente pelas forças conservadoras, que utilizarão todo o tipo de repressão e violência provocadora. E é extremamente importante não responder a estas provocações com a força física. A violência é extremamente reaccionária, porque distancia a esquerda da população (que condena sempre a violência). Hoje, a grande maioria da população está de acordo com os princípios-chave que a esquerda defende (ou deveria defender), isto é, está de acordo com a necessidade de redefinir a democracia, recusando este Estado actual, herdeiro da Transição pouco exemplar, que deu lugar a um Estado escassamente democrático, corrupto e cooptado por interesses financeiros e económicos. Nada menos que cerca de 80% da população espanhola está de acordo com a máxima do recente movimento 15-M “Não nos representam”. Daí a urgência em manter este apoio popular, do qual a esquerda deriva o seu poder. E mais de 86% da população está, também, de acordo com a ideia de que o Estado não está a servir os cidadãos nas suas necessidades quotidianas.

É aí, precisamente, onde a esquerda deveria centrar os seus esforços. A esquerda teria que centrar-se em fazer propostas reais de resolução para solucionar os problemas que angustiam as classes populares deste país, guiando-se pelos princípios socialistas, que indiquei anteriormente. Quando se  estabelece um serviço nacional de saúde, encaminhado a responder às necessidades da população, definidas por ela mesma, e financiado com impostos progressivos, está a caminhar-se para o socialismo, independentemente de como se chame. A grande maioria da população está de acordo com esta medida. Quando se está a destruir um serviço nacional de saúde, substituindo-o por companhias de seguros ou de gestão privadas, que têm como objectivo aumentar os seus lucros, está a destruir-se o socialismo e a construir o capitalismo.
Não aconselho, portanto, a que se pretenda patrimonializar estas mudanças, pondo-lhes uma etiqueta. Utilizar termos e narrativas genéricas como “anticapitalismo” ou “socialismo” tem pouco sentido quando nos distancia dos cidadãos, ou quando isso é percepcionado como excluente. Há que ser consciente de que nenhuma das revoluções socialistas, no século XX, desde a revolução bolchevique à cubana ou chinesa, mobilizaram a população com o apelo ao socialismo. O que mobilizou a população foram propostas reais, imediatas, que conectavam com a vida diária (o desejo de paz, da reforma agrágria, do fim da ditadura). Foi a rigidez do sistema autoritário, existente naqueles países, que, face a esta petição de reformas, criou o seu colapso. As revoluções não se fazem pedindo a revolução, mas pedindo programas reformistas que, ao não poderem realizar-se, determinam mobilizações populares, que exigem o fim dos regimes autoritários ou escassamente democráticos. E é esta a situação actual.



O original deste artigo pode encontrar-se em www.vnavarro.org
* Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.

 

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