O QUE ELES ESCONDEM

sexta-feira, 21 de março de 2014


A AMERICANIZAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA

Por Vicenç Navarro*

Não há plena consciência, em amplos círculos progressistas do nosso país, de que o que se está a passar na Europa é a “americanização deste continente”, resultado da generalização de políticas públicas de claro recorte neoliberal, que os governos europeus estão a aplicar e a impor às suas populações, seguindo o mandato da Troika, isto é, do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu. A Europa Ocidental era vista, internacionalmente, como a Europa social e a Europa democrática, ponto de referência das forças progressistas, que desejavam desenvolver o Estado de Bem-estar, através de processos democráticos. Esta visão tivera sempre uma componente de idealização. Contudo, havia uma componente de realidade, sobretudo quando era contrastada com a experiência nos EUA, onde o capitalismo se manifesta em toda a sua crueza, com escassa protecção social e uma democracia extremamente limitada. Pois bem, o que está a ocorrer, nesta Europa social e democrática, é a perda da sua identidade e peculiaridade, da sua dimensão social, diluindo o seu compromisso democrático.
Vejamos, em primeiro lugar, o que está a ocorrer nos EUA. O que aparece mais rapidamente é a enorme concentração dos rendimentos e riquezas num grupo muito, mas muito pequeno da população (que tira os seus rendimentos da propriedade do capital), à custa do empobrecimento de todos os demais, isto é, da maioria da população, que obtem os seus rendimentos do trabalho. Os indicadores disto são os seguintes:

1. 1% da população recebeu 95% de todo o crescimento da riqueza, gerada durante o período de 2009-2012.
2. 60% dos postos de trabalho que desapareceram durante a Grande Recessão eram bons postos de trabalho, isto é, bem pagos, ao passo que 59% dos novos postos de trabalho são postos de trabalho com salários baixos. Quer dizer, os postos de trabalho com salários baixos (e muito baixos) estão a substituir os postos de trabalho medianamente e/ou bem pagos. Em 2020, calcula-se que quase metade dos postos de trabalho terão salários baixos ou muito baixos.

3. Os lucros das grandes corporações alcançaram níveis recorde. As empresas financeiras foram as mais beneficiadas.
4. Os rendimentos do capital subiram, em percentagem do PIB, como nunca antes tinham subido, enquanto que os rendimentos do trabalho baixaram em percentagens nunca antes vistas.

5. Segundo os estudiosos mais respeitados no estudo dos rendimentos, nos EUA, Thomas Piketty e Emmanuel Saez, durante os últimos trinta anos (com início na era Reagan), a percentagem dos rendimentos que foi para o 1% mais rico dos EUA duplicou (e o que foi para o 0,1% triplicou).
6. Esta concentração dos rendimentos, que vêm do capital, num sector muito minoritário da população, traduziu-se num crescimento muito notável da sua influência política e mediática, que se traduziu em políticas públicas que o beneficiou enormemente. As áreas de especial influência foram as de política fiscal e as de desregulamentação do capital, conseguindo uma grande desregulamentação no manuseio e utilização deste capital.

7. A contribuir para esta descida maciça dos rendimentos derivados do trabalho está a estabilidade e descida do salário mínimo.
8. A relação entre o que, nos EUA, se chama Corporate America (o 1% da população) e a classe política alcançou níveis de cumplicidade nunca antes vistos nos EUA. Tal cumplicidade alcançou tal nível que a corrupção deixou de ser definida como tal. Na realidade, a compra de políticos por parte de empresas financeiras, industriais ou de serviços é legal e não é considerada corrupção. Desta maneira, um dos sistemas mais corruptos da OCDE aparece como um dos menos corruptos, pois a compra de políticos não é ilegal e é uma prática comum e generalizada nos EUA.

Esta é a situação, nos EUA, onde o domínio do capital é quase absoluto, situação que está a aparecer, também, na União Europeia e, muito especialmente, nos países do sul da Europa (incluindo a Espanha), onde as forças progressistas são débeis e estão constantemente divididas.

O original  encontra-se em www.vnavarro.org

* Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.

 

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