O QUE ELES ESCONDEM

quarta-feira, 5 de março de 2014


 


 
QUERO SER INVISÍVEL

                                           Por Concha Caballero*

Nunca entendi esse desejo. Quando, em pequenos, nos perguntavam que característica de super-herói queríamos ter, algumas crianças diziam que era a de ser invisível. Eu não compreendia que tipo de sonho era esse, nem que vantagens tinha essa condição. Espiar todos, sem ser descoberto? Comer os bolos e os rebuçados às escondidas? Porventura, roubar sem medo de ser surpreendido?
A mim, parecia-me muito mais interessante voar pelo céu e chegar, num instante, a qualquer cidade do mundo, ler os pensamentos das pessoas ou aprender uma qualquer habilidade, lendo, simplesmente, um livro, a uma velocidade vertiginosa.Que enganada que eu estava! A verdadeira marca de poder é, afinal, ser completamente invisível.

E mais, os poderosos, os que verdadeiramente dominam o mundo, são, na realidade, invisíveis aos nossos olhos. Poderão dizer-me que há milhões de pessoas pobres, sem nada, que são, também, invisíveis, mas não é certo. Vêmo-los nas ruas e nos noticiários. Conhecêmo-los quando um furacão arrasa uma costa, quando a fome ruge no coração de África, quando estala uma guerra em qualquer lugar do mundo. Por vezes, estão à porta da nossa casa, com o olhar perdido e um rosto que sabem não iremos recordar. Não. Os pobres não são invisíveis, mas silenciados. Os seus rostos existem. Olham-nos a nós e nós não os olhamos para eludir qualquer responsabilidade para com eles. Negamo-nos a conceder-lhes uma singularidade, uma individualidade que lhes otorgue um estatuto de igualdade como seres humanos. Não são invisíveis, mas anónimos.
Desde que Andy Warhol proclamou que “cada ser humano deveria ter direito a 15 minutos de glória”, meio mundo corre atrás das câmaras de televisão ou pespega-se diante do seu próprio telemóvel para conseguir essa pitada de paraíso artificial que, embora efémera, dará sentido à sua vida.

Mas, os realmente poderosos fogem dos holofotes. O verdadeiro toque de distinção é não sair nos meios de comunicação, não comparecer, não se submeter ao escrutínio público, não responder pelas suas acções. Podem ser citados, nomeados, mas nunca converter-se em objecto público.
Os ricos do séc.XXI aprenderam uma única lição, desde a Revolução Francesa e de todas as revoltas populares: os seus palácios e ostentações não podem estar no mesmo bairro onde vivem as suas vítimas. Os poderosos, agora, não se exibem diante dos pobres, mas diante deles mesmos; não mostram os seus bens aos deserdados, mas aos da sua mesma espécie; tornaram-se invisíveis à sociedade e mandaram uma horda de lacaios para que, em caso de necessidade, contenham a ira dos de baixo.

Criaram a ficção de que não existem. Conseguiram convencer-nos de que são os seus intermediários ou porta-vozes quem os representam. Fizeram-se invisíveis aos nossos olhos e cumpriram o velho sonho de robar às escondidas, com a impunidade garantida, que dá o saber de não vir a ser descoberto.
Há, em Espanha, 40.000 milhões de euros a circular, em notas de 500, e a maioria da população nunca os viu. Na Andaluzia, proliferam como cogumelos depois de chover. Os milhares e milhares de pessoas, que trabalham sem estarem inscritos na Segurança Social ou com contratos fictícios, nunca viram esse papel, apesar de os seus salários, pagos em notas mais pequenas, sairem desse mercado negro. As notas são roxas como a cor do sofrimento que produzem. Mas, ninguém relaciona uma realidade com outra. A nota roxa com a falta de direitos, a nota roxa com a total injustiça social, a nota roxa como fracasso do Estado, da política e do bem comum. A nota roxa como a cor negra de uma economia sem sentido.

O sonho de invisibilidade tornou-se realidade. Os verdadeiramente ricos, os realmente poderosos são invisíveis. Só de vez em quando, uma estatística nos recorda a sua existência. “Vinte pessoas, em Espanha, têm tanta riqueza como nove milhões”, “ o mercado do luxo cresceu, em 2013, 15%”, “os rendimentos do capital aumentaram, no ano passado, quase 4%”... Durante uns segundos, a notícia enerva-nos, mas, como não podemos pôr-lhe um rosto, nome e morada, a indignação consome-se como um fogo-fátuo ou abate-se contra objectivos errados. Ai, esses canalhas invisíveis!  

_________                

O original foi publicado em El País Andalucía,em 2-2-2014 e  encontra-se no blogue da autora: www.ideasconchacaballero.blogspot.com

 * Foi deputada e porta-voz da Izquierda Unida da Andaluzia. Actualmente é professora de Língua e Literatura. Escreve e participa em vários meios de comunicação espanhóis.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário