O QUE ELES ESCONDEM

segunda-feira, 3 de março de 2014


O QUE NÃO SE DIZ SOBRE O CRESCIMENTO DAS DESIGUALDADES

Por Vicenç Navarro*

Por fim o grande crescimento das desigualdades que temos vindo a sofrer, na maoria dos países dos dois lados do Atlântico Norte, passou a ser notícia, com um número cada vez maior de fóruns e conferências a dedicar atenção a este tema, apresentando-o como um problema. Inclusive o Forum de Davos, um dos centros de reflexão neoliberal com maior impacto mediático, dedicou, este ano, um espaço importante do seu programa a este tema. É interessante notar, contudo, que o que tem estado a acontecer com o tema das desigualdades é muito semelhante ao que aconteceu com as alterações climáticas. Tal como neste último caso, a sabedoria convencional nestes países (dominados desde os anos oitenta pelo dogma neoliberal) negava, ao princípio, a sua existência. Dizia-se que, contrariamente ao que asseguravam alguns “radicais extremistas” (o menos ofensivo de um chorrilho de insultos), não havia nenhuma alteração climática. Quando a evidência de que, sim, havia tal alteração, era já esmagadora, a sabedoria convencional admitiu-o, depois de muita resistência e receio, mas acrescentou, imediatamente, que ela não era causada pela intervenção humana. Devia-se – dizia a sabedoria convencional – a mudanças cíclicas da natureza, sobre as quais a intervenção humana pouco podia fazer.
Uma volução similar ocorreu, agora, com o crescimento das desigualdades. Primeiro, negou-se que existisse, acusando-nos, àqueles que demonstrávamos que era uma realidade com terríveis consequências sociais e económicas, de “radicais desmancha-prazeres”. Mais tarde, perante a evidência esmagadora que punha em causa este dogma, admitiram a sua existência, porém, negaram que se devesse a decisões políticas concretas, tomadas por instituições públicas altamente influenciadas pelos grupos financeiros e económicos (que configuravam a sabedoria convencional neoliberal do conhecimento económico), atribuindo as ditas alterações a factos como “a globalização da actividade económica”, “a introdução de novas tecnologias” ou outras argumentações, factos que se consideravam (erroneamente) apolíticos, determinados pela própria lógica e dinâmica do sistema económico. Na realidade, cada um destes factos, supostamente apolíticos, era o resultado de decisões políticas tomadas pelos Estados, cada um deles influenciado por aqueles grupos financeiros e económicos que dominavam o processo de governação em cada país.

Por que razão cresceram as desigualdades?
Na realidade, a força mais determinante na evolução das desigualdades sociais e do seu crescimento foi o grau de influência que os proprietários e gestores do grande capital (isto é, o mundo das grandes empresas financeiras, industrais e de serviços e que inclui pessoas e instituições que tiram os seus rendimentos a partir da propriedade do capital) tiveram sobre os seus Estados. Quanto maior for a sua influência sobre o Estado, maior são as desigualdades num país. Pelo contrário, quanto maior é a influência do mundo do trabalho (isto é, da maioria da população que obtém os seus rendimentos do trabalho, com escassa propriedade) sobre os Estados, menores são as desigualdades. A evidência de que isto é assim é esmagadora. Durante o período de 1947-1979 (o chamado “período dourado do capitalismo), quando o mundo do trabalho tinha mais poder, o crescimento da riqueza dos países foi repartido de forma mais igualitária do que durante o período de 1979-2013, quando – com a revolução neoliberal iniciada pelo Presidente Reagan e pela Srª Thatcher – o mundo do capital foi quem, claramente, dominou as instituições do Estado. Durante este último período, como resultado do crescimento da produtividade, houve um aumento da riqueza, que se concentrou nos sectores mais abastados da população que tira grande parte dos seus rendimentos da propriedade do capital.

Estes dados mostram que as causas do crescimento das desigualdades são primordialmente políticas, isto é, que derivam de decisões tomadas pelo Estado, como resultado do grau de influência diferencial que têm, sobre esse Estado, o mundo do capital e o mundo do trabalho. A época neoliberal (1980-2013) foi a época de maior domínio do Estado por parte do capital, tendo-se alcançado uns níveis nunca vistos, desde princípios do séc. XX. Nos estados Unidos, por exemplo, os 10% mais ricos da população possuem 77,1% de toda a riqueza, enquanto os 90% restantes possuem 22,9%. Na realidade, 40% da população não tem propriedade nenhuma, muito pelo contrário, está endividada.. Os 20% que se lhes seguem têm apenas 3,3% de toda a riqueza, seguidos dos outros 20% que têm 10% de toda a propriedade. A soma disto (40+20+20) mostra que 80% tem apenas 13,3% da riqueza. (Os dados que apresento, neste artigo, foram retirados de John Schmitt “The Economy and the Evolution of Income and Wealth”. Public Policy Program. The Johns Hopkins University. 20 de Fevereiro de 2014).
Esta enorme concentração da riqueza, a causa maior do crescimento das desigualdades, motivou o movimento popular de protesto, conhecido, nos EUA, como Occupy Wall Street (claramente influenciado pelo movimento dos indignados, o 15-M, de Espanha), que denuncia o 1% da população (que controla, em grande medida, a propriedade dos meios financeiros, com base político e mediático do país.

Pois bem, embora o número de 1% - que inclui o grupo dominante do poder financeiro, económico e mediático do país – seja um número muito gráfico e didáctico, para mostrar o grau de concentração de concentração do poder nos EUA, é um número que substima o problema político a que tem de fazer frente qualquer estratégia encaminhada a reverter a dita concentração. Este 1%, que controla 35,6% de toda a riqueza, está seguido de um 9%, que controla outro 39,5%. O problema, pois, não é só o 1%, mas inclui também o outro 9% que, juntos, somam o total de 77,1% de toda a riqueza. Este 9% são os grandes proprietários do capital industrial e de serviços, assim como os sectores sociais que beneficiam claramente do sistema de propriedade actual e que inclui, entre outros, os dirigentes mediáticos, a intelectualidade do regime, a classe dirigente da administração pública e a maioria da classe política governante, todos eles serventuários das estruturas do poder. Juntamente ao 1% do capital financeiro, eles representam o que, nos estados Unidos, se chama a Corporate Class. Daí que o conflito não está nos 99% da população contra o 1%, mas nos 90% contra os 10%, tendo estes últimos um enorme poder. Os grandes gurus mediáticos, por exemplo, não fazem parte do 1%, mas, sim, do outro 9%, que serve o sistema, controlado pelo 1% e que se oporá, por todos os meios, a que mude o sistema que os beneficia.

O declínio do sistema democrático
Esta enorme concentração de riqueza foi consequência das intervenções do Estado, que favoreceram, sistemática e abusivamente, desde os anos oitenta, o capital, à custa do mundo do trabalho. E quando digo à custa, quero dizer que os rendimentos do capital subiram, como consequência de terem diminuído os rendimentos do trabalho. Por outras palavras, o crecimento da riqueza, como resultado do aumento da produtividade (incluída a produtividade laboral) não se repercutiu tanto na melhoria dos rendimentos do trabalho, como no crescimento desmesurado dos rendimentos do capital. Na realidade, o salário à horá (controlado pela inflação e tipo de trabalho), nos EUA, foi menor em 2013 do que no ano de 1978.

A situação, em Espanha, é muito semelhante à que existe nos EUA. A enorme influência dos 10% mais ricos da sociedade (tanto no Estado como na sociedade civil) está a causar o enorme crescimento das desigualdades. E isso acontece, tanto directa como indirectamente, através das políticas públicas do Estado. Entre as directas estão as políticas fiscais, por exemplo, que beneficiam, sistematicamente, o capital, à custa do trabalho. E entre as indirectas está a despesa pública. Por exemplo, a redução do emprego público e da capacidade aquisitiva do funcionário público (e, com isso, a descida do rendimento nacional que vai para o mundo do trabalho) é feito para poder pagar os resgates à banca e pagar a dívida pública (propriedade, na sua maioria, da banca), com o qual se está a fazer uma transferência de fundos públicos dos 90% da população espanhola, cujo rendimento vem do trabalho, para o 1%, que tira os seus rendimentos da propriedade do capital financeiro (do qual depende os outros 9%, que estão ao serviço do 1%), que controla o sistema de governação do país.
E é esta enorme concentração da riqueza que está a destruir a democracia. Mas, asseguro-lhe que não irá ler tudo isto nos meios de comunicação. Um artigo como este não se pode publicar nos cinco jornais mais importantes do país. Peço-lhe que o distribua.

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O original deste texto encontra-se em www.vnavarro.org

* Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.

 

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