O QUE NÃO SE DIZ SOBRE O CRESCIMENTO DAS
DESIGUALDADES
Por Vicenç Navarro*
Por fim o grande crescimento
das desigualdades que temos vindo a sofrer, na maoria dos países dos dois lados
do Atlântico Norte, passou a ser notícia, com um número cada vez maior de
fóruns e conferências a dedicar atenção a este tema, apresentando-o como um
problema. Inclusive o Forum de Davos, um dos centros de reflexão neoliberal com
maior impacto mediático, dedicou, este ano, um espaço importante do seu
programa a este tema. É interessante notar, contudo, que o que tem estado a
acontecer com o tema das desigualdades é muito semelhante ao que aconteceu com
as alterações climáticas. Tal como neste último caso, a sabedoria convencional
nestes países (dominados desde os anos oitenta pelo dogma neoliberal) negava,
ao princípio, a sua existência. Dizia-se que, contrariamente ao que asseguravam
alguns “radicais extremistas” (o menos ofensivo de um chorrilho de insultos),
não havia nenhuma alteração climática. Quando a evidência de que, sim, havia
tal alteração, era já esmagadora, a sabedoria convencional admitiu-o, depois de
muita resistência e receio, mas acrescentou, imediatamente, que ela não era
causada pela intervenção humana. Devia-se – dizia a sabedoria convencional – a
mudanças cíclicas da natureza, sobre as quais a intervenção humana pouco podia
fazer.
Uma volução similar ocorreu,
agora, com o crescimento das desigualdades. Primeiro, negou-se que existisse,
acusando-nos, àqueles que demonstrávamos que era uma realidade com terríveis
consequências sociais e económicas, de “radicais desmancha-prazeres”. Mais
tarde, perante a evidência esmagadora que punha em causa este dogma, admitiram
a sua existência, porém, negaram que se devesse a decisões políticas concretas,
tomadas por instituições públicas altamente influenciadas pelos grupos
financeiros e económicos (que configuravam a sabedoria convencional neoliberal
do conhecimento económico), atribuindo as ditas alterações a factos como “a
globalização da actividade económica”, “a introdução de novas tecnologias” ou
outras argumentações, factos que se consideravam (erroneamente) apolíticos,
determinados pela própria lógica e dinâmica do sistema económico. Na realidade,
cada um destes factos, supostamente apolíticos, era o resultado de decisões
políticas tomadas pelos Estados, cada um deles influenciado por aqueles grupos
financeiros e económicos que dominavam o processo de governação em cada país.
Por
que razão cresceram as desigualdades?
Na realidade, a força mais
determinante na evolução das desigualdades sociais e do seu crescimento foi o
grau de influência que os proprietários e gestores do grande capital (isto é, o
mundo das grandes empresas financeiras, industrais e de serviços e que inclui
pessoas e instituições que tiram os seus rendimentos a partir da propriedade do
capital) tiveram sobre os seus Estados. Quanto maior for a sua influência sobre
o Estado, maior são as desigualdades num país. Pelo contrário, quanto maior é a
influência do mundo do trabalho (isto é, da maioria da população que obtém os
seus rendimentos do trabalho, com escassa propriedade) sobre os Estados,
menores são as desigualdades. A evidência de que isto é assim é esmagadora.
Durante o período de 1947-1979 (o chamado “período dourado do capitalismo),
quando o mundo do trabalho tinha mais poder, o crescimento da riqueza dos
países foi repartido de forma mais igualitária do que durante o período de
1979-2013, quando – com a revolução neoliberal iniciada pelo Presidente Reagan
e pela Srª Thatcher – o mundo do capital foi quem, claramente, dominou as
instituições do Estado. Durante este último período, como resultado do
crescimento da produtividade, houve um aumento da riqueza, que se concentrou
nos sectores mais abastados da população que tira grande parte dos seus rendimentos
da propriedade do capital.
Estes dados mostram que as
causas do crescimento das desigualdades são primordialmente políticas, isto é,
que derivam de decisões tomadas pelo Estado, como resultado do grau de
influência diferencial que têm, sobre esse Estado, o mundo do capital e o mundo
do trabalho. A época neoliberal (1980-2013) foi a época de maior domínio do
Estado por parte do capital, tendo-se alcançado uns níveis nunca vistos, desde
princípios do séc. XX. Nos estados Unidos, por exemplo, os 10% mais ricos da
população possuem 77,1% de toda a riqueza, enquanto os 90% restantes possuem
22,9%. Na realidade, 40% da população não tem propriedade nenhuma, muito pelo
contrário, está endividada.. Os 20% que se lhes seguem têm apenas 3,3% de toda
a riqueza, seguidos dos outros 20% que têm 10% de toda a propriedade. A soma
disto (40+20+20) mostra que 80% tem apenas 13,3% da riqueza. (Os dados que
apresento, neste artigo, foram retirados de John Schmitt “The Economy and the
Evolution of Income and Wealth”. Public
Policy Program. The Johns Hopkins University. 20 de Fevereiro de 2014).
Esta enorme concentração da
riqueza, a causa maior do crescimento das desigualdades, motivou o movimento
popular de protesto, conhecido, nos EUA, como Occupy Wall Street (claramente
influenciado pelo movimento dos indignados, o 15-M, de Espanha), que denuncia o
1% da população (que controla, em grande medida, a propriedade dos meios
financeiros, com base político e mediático do país.Pois bem, embora o número de 1% - que inclui o grupo dominante do poder financeiro, económico e mediático do país – seja um número muito gráfico e didáctico, para mostrar o grau de concentração de concentração do poder nos EUA, é um número que substima o problema político a que tem de fazer frente qualquer estratégia encaminhada a reverter a dita concentração. Este 1%, que controla 35,6% de toda a riqueza, está seguido de um 9%, que controla outro 39,5%. O problema, pois, não é só o 1%, mas inclui também o outro 9% que, juntos, somam o total de 77,1% de toda a riqueza. Este 9% são os grandes proprietários do capital industrial e de serviços, assim como os sectores sociais que beneficiam claramente do sistema de propriedade actual e que inclui, entre outros, os dirigentes mediáticos, a intelectualidade do regime, a classe dirigente da administração pública e a maioria da classe política governante, todos eles serventuários das estruturas do poder. Juntamente ao 1% do capital financeiro, eles representam o que, nos estados Unidos, se chama a Corporate Class. Daí que o conflito não está nos 99% da população contra o 1%, mas nos 90% contra os 10%, tendo estes últimos um enorme poder. Os grandes gurus mediáticos, por exemplo, não fazem parte do 1%, mas, sim, do outro 9%, que serve o sistema, controlado pelo 1% e que se oporá, por todos os meios, a que mude o sistema que os beneficia.
O
declínio do sistema democrático
Esta enorme concentração de
riqueza foi consequência das intervenções do Estado, que favoreceram,
sistemática e abusivamente, desde os anos oitenta, o capital, à custa do mundo
do trabalho. E quando digo à custa, quero dizer que os rendimentos do capital
subiram, como consequência de terem diminuído os rendimentos do trabalho. Por
outras palavras, o crecimento da riqueza, como resultado do aumento da
produtividade (incluída a produtividade laboral) não se repercutiu tanto na
melhoria dos rendimentos do trabalho, como no crescimento desmesurado dos
rendimentos do capital. Na realidade, o salário à horá (controlado pela inflação
e tipo de trabalho), nos EUA, foi menor em 2013 do que no ano de 1978.
A situação, em Espanha, é
muito semelhante à que existe nos EUA. A enorme influência dos 10% mais ricos
da sociedade (tanto no Estado como na sociedade civil) está a causar o enorme
crescimento das desigualdades. E isso acontece, tanto directa como
indirectamente, através das políticas públicas do Estado. Entre as directas
estão as políticas fiscais, por exemplo, que beneficiam, sistematicamente, o
capital, à custa do trabalho. E entre as indirectas está a despesa pública. Por
exemplo, a redução do emprego público e da capacidade aquisitiva do funcionário
público (e, com isso, a descida do rendimento nacional que vai para o mundo do
trabalho) é feito para poder pagar os resgates à banca e pagar a dívida pública
(propriedade, na sua maioria, da banca), com o qual se está a fazer uma
transferência de fundos públicos dos 90% da população espanhola, cujo
rendimento vem do trabalho, para o 1%, que tira os seus rendimentos da
propriedade do capital financeiro (do qual depende os outros 9%, que estão ao
serviço do 1%), que controla o sistema de governação do país.
E é esta enorme concentração
da riqueza que está a destruir a democracia. Mas, asseguro-lhe que não irá ler
tudo isto nos meios de comunicação. Um artigo como este não se pode publicar
nos cinco jornais mais importantes do país. Peço-lhe que o distribua.
______
O original deste texto encontra-se em www.vnavarro.org
*
Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de
Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona.
É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore,
EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e
Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns
Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.
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