O QUE ELES ESCONDEM

quinta-feira, 13 de março de 2014

FALSIDADES DO PENSAMENTO ECONÓMICO DOMINANTE

Por Vicenç Navarro*

Permita-me, sr. Leitor, que lhe fale como se estivéssemos a tomar um café, explicando-lhe algumas das maiores falsidades que lhe apresentam, diariamente, na imprensa de economia. Deveria estar consciente de que grande parte dos argumentos que são apresentados, nos maiores meios de informação e persuasão económicos do país, para justificar as políticas públicas que estão a ser levadas a cabo, são posições claramente ideológicas, que não têm sustentação com base na evidência científica existente. Citar-lhe-ei algumas das mais importantes, demonstrando-lhe que os dados contradizem o que é dito. E também tentarei explicar-lhe por que razão se continua a repetir estas falsidades, apesar de a evidência científica as pôr em causa, e com que fim as apresentam, diariamente, a si e ao público.
Comecemos por uma das falsidades mais importantes, que é a afirmação de que os cortes da despesa pública nos serviços públicos do Estado de Bem-estar, como a Saúde, Educação, serviços domiciliários, habitação social e outros (que estão perjudicando enormemente o bem-estar social e a qualidade de vida das classes populares) são necessários para que não aumente o défice público. E perguntará o senhor: “e por que é tão mau que cresça o défice público?” E os reprodutores da sabedoria convencional responder-lhe-ão que a causa de se ter que reduzir o défice público é o crescimento deste défice determinar o crescimento da dívida pública, que é o que o Estado tem que pagar (predominantemente à banca, que tem algo mais de metade da dívida pública, em Espanha) por ter pedido emprestado dinheiro à banca, para cobrir o buraco criado pelo défice público. Sublinha-se, assim, que a dívida pública (que se considera uma carga para as gerações futuras, que terão de a pagar) não pode continuar a crescer, devendo ser reduzida, cortando o défice público, o que quer dizer, para eles, cortar e cortar no Estado de Bem-estar, até acabar com ele, que é o que está a acontecer em Espanha.
Os argumentos utilizados para justificar os cortes não são credíveis.
O problema desta posição é que os dados (que o saber convencional oculta ou ignora) mostram precisamente o contrário. Os cortes são enormes (nunca, durante a época democrática, se tinha visto uns cortes tão grandes) e, em contrapartida, a dívida pública continua e continua a crescer. Repare no que está a passar-se em espanha, por exemplo, com a saúde pública, um dos serviços públicos mais importantes e melhor valorados pela população. A despesa pública com a Saúde, em percentagem do PIB, foi reduzida à volta de 3,5%, no período de 2009-2011 (quando deveria ter crescido 7,7% durante o mesmo período, para chegar à despesa média dos países com um desenvolvimento económico semelhante ao nosso) e o défice público diminuiu, passando de 11,1% do PIB, em 2009, para 10,6%, em 2012 e, pelo contrário, a dívida pública não baixou, mas continuou a aumentar, passando de 36% do PIB, em 2007, para 86%, em 2012. Na realidade, a causa de a dívida pública estar a aumentar deve-se, em parte, aos cortes na despesa pública.
Como pode ser isso? – perguntará o senhor. Pois a resposta é fácil. A descida da despesa pública implica a diminuição da procura pública e, consequentemente, do crescimento e da actividade económica, receben do o Estado menos receitas por via dos impostos e taxas. E, recebendo menos impostos, o Estado tem de endividar-se mais, continuando a dívida pública a crescer. É escusado dizer que o maior ou menor impacto, estimulante da despesa pública, depende do tipo de despesa. Mas, estão a cortar nos serviços públicos do Estado de Bem-estar, que são os que criam mais emprego e estão entre os que estimulam mais a economia. Permita-me que repita esta explicação, dada a sua enorme importância.
Quando o Estado (tanto o central, como o autonómico e local) aumenta a despesa pública, aumenta a procura de produtos e serviços e, com isso, o estímulo económico. Quando baixa, diminui a procura e desce o crescimento económico, recebendo o Estado menos fundos. É o que, em terminologia macroeconómica, se conhece como efeito multiplicador da despesa pública. O investimento e os gastos públicos facilitam a actividade económica, o que é negado pelos economistas neoliberais (que são promovidos na grande maioria dos meios de maior informação e persuasão do país) e isso apesar da enorme evidência publicada na literatura científica (ver o meu livro Neoliberalismo e Estado de Bem-estar, Ariel Económica, 1997).
Outra farsa: gastamos mais do que temos.
O mesmo saber convencional está a dizer-lhe, também, que a crise se deve a termos estado a gastar demasiado, muito acima das nossas possiblilidades. Daí a necessidade de apertar o cinto (o que quer dizer cortar, cortar e cortar na despesa pública). Em regra geral, esta posição anda acompanhada com a afirmação de que o Estado tem de comportar-se como as famílias, isto é, “em nenhum momento se pode gastar mais do que se recebe”. O Presidente Rajoy e a Srª Merkel repetiram esta frase milhares de vezes.
Esta frase tem uma componente de hipocrisia e outra de falsidade. Deixe-me explicar-lhe o porquê de cada uma. Eu não sei como o senhor leitor comprou o seu carro. Mas eu, como a grande maioria dos espanhóis, comprei o carro a prestações, isto é, a crédito. Todas as famílias se endividaram e assim funciona o orçamento familiar. Pagamos as nossas dívidas à medida que vamos tendo recursos, que, para a maioria dos espanhóis, vêm do trabalho. E daí deriva o problema actual. Não é que as pessoas tenham andado a gastar acima das suas possibilidades, o seu rendimento e as suas condições de trabalho é que se têm deteriorado mais e mais, sem que a população seja responsável por isso. Na realidade, os responsáveis de que isso aconteça são os mesmos que lhe estão a dizer que têm que cortar nos serviços públicos do Estado de Bem-estar e também baixar os salários. E, agora, têm a ousadia (para o dizer de forma suave) de afirmar que a culpa têmo-la o senhor e eu, porque andámos a gastar mais e mais. Eu não sei o que se passou consigo, mas garanto-lhe que a maioria das famílias não andaram a comprar e a acumular bens como loucos. Muito pelo contrário.
Existe a mesma hipocrisia no argumento de que o Estado gastou demasiado. Repare o senhor leitor que o Estado espanhol esteve a gastar, não muito mais, mas muito menos do que gastaram outros países de semelhante nível de desenvolvimento económico. Antes da crise, a despesa pública representava apenas 39% do PIB, quando a média da UE a 15 era de 46% do PIB. Já então o Estado deveria ter gastado, como mínimo, 66.000 milhões de euros mais, em despesa pública social, para gastar o que correspondia ao seu nível de riqueza. Não é verdade que, quer as famílias, quer o Estado, tenham gastado mais do que deveriam. E, apesar disto, continuarão a dizer-lhe que a culpa é da maioria da população, que gastou demasiado e, agora, tem que apertar o cinto.
O senhor trá, também, ouvido dizer que estes sacrifícios (os cortes) têm de ser feitos “par salvar o euro”.
De novo, esta cantilena de que “estes cortes são necessários para salvar o euro” reproduz-se constantemente. Pois bem, ao contrário do que constantemente se anuncia, o euro nunca esteve em perigo. Nem tão-pouco há a mais pequena possibilidade de alguns países periféricos (os PIGS, que incluem Espanha) da eurozona serem expulsos do euro, Efectivamente, um dos problemas, dos muitos que estes países têm, é o de o euro estar demasiado forte e são. A sua cotação tem estado sempre a subir acima da do dólar e o seu elevado valor dificulta a economia dos países periféricos da eurozona. E outro problema é o de o capital financeiro alemão lhes ter emprestado, com imensos lucros, 700.000 milhões de euros e, agora, quer que os países periféricos lhos devolvam. Se algum deles deixasse o euro, a banca alemã poderia colapsar.Esta banca (cuja influência é enorme) não quer nem ouvir falar de que estes países devedores saíam do euro. Asseguro-lhe que é a última coisa que querem. Esta observação, que é óbvia, não é um argumento, por certo, a favor da permanência no euro. Na realidade, creio que os países PIGS deveriam ameaçar sair do euro. Mas, é absurdo o argumento utilizado de que a Espanha deva ver reduzido, ainda mais, o tempo da consulta médica para salvar o euro (que é o código para dizer “salvar a banca alemã e devolver-lhe o dinheiro que emprestou, com enormes lucros).
Estas são as falácias que, constantemente, lhe são expostas. Mas asseguro-lhe que lhe são apresentadas sem que haja qualquer evidência que as avale. Pura e simplesmente.
A causa dos cortes.
E o senhor perguntará: “por que é que se fazem, então, os cortes?” E a resposta é fácil, embora raramente a veja naqueles meios de informação e persuasão. É aquilo a que se costumava chamar “luta de classes”, mas, agora, aqueles meios não utilizam esta expressão por a considerarem “antiquada”, “ideológica”, “demagógica”, ou qualquer epíteto que utilizam para mostrar a repulsa e o desejo de marginalizar os que vêem a realidade, segundo um critério distinto e, inclusivamente, oposto ao que defende o saber convencional do país.
Mas, por muito que a queiram ocultar, essa luta existe. É a luta (o que o meu amigo Naom Chomsky chama, inclusive, guerra de classes (como expõe na sua introdução ao livro Hay alternativas. Propuestas para crear empleo y bienestar social en España, de Juan Torres, Alberto Garzón e eu) de uma minoria (os proprietários e gestores do capital, isto é, da propriedade que gera rendas) contra a maioria da população (que obtem os seus rendimentos do trabalho). Não é necessário dizer que esta luta de classes tem variado, segundo o período em que se vive. Era diferente na época dos nossos pais e avós daquela que está a ocorrer agora. Na realidade, agora é, inclusive, mais ampla, pois não é só das minorias, que controlam e gerem o capital, contra a classe trabalhadora (que continua a existir), mas inclui, também, grandes sectores da classe média, formando o que se chama as classes populares, juntamente com a classe trabalhadora. Esta minoria é enormemente poderosa, controla a maioria dos meios de informação e persuasão e tem, também, uma grande influência sobre a classe política. Este grupo minoritário deseja que se baixem os salários, que a classe trabalhadora esteja atemorizada (o desemprego desempenha essa função) e que perca os direitos laborais e sociais. E está a reduzir os serviços públicos como parte desta estratégia para debilitar esses direitos. É, também, um factor importante a privatização dos serviços públicos, que é a consequência dos cortes, e que permite a entrada do grande capital (e, muito particularmente, do capital financeiro-banca e das companhias de seguros) nestes sectores, aumentando os seus ganhos. O senhor terá lido como, em Espanha, as companhias privadas de seguros da saúde estão a expandir-se como nunca antes o tinham conseguido. E muitas das empresas financeiras de alto risco (que quer dizer altamente especulativas) estão hoje a controlar grandes instituições de saúde, no país, graças às políticas privatizadoras e de cortes, que os governos estão a realizar, justificando tudo isto com a farsa (e, creia-me, não há outra maneira de o dizer) de que têm de o fazer para reduzir o défice público e a dívida pública.
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Texto original publicado em www.publico.es , na coluna Dominio Público, em 30-1-2014
* Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de Espanha.

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