Campeão das rotundas, Portugal vai
passar a ser o país dos pelourinhos
11-10-2014
Por
Óscar Mascarenhas [*]
Havendo males que vêm por bem, o desvario que esvurma
dos atuais governantes e seus valetes vai recolocar, aos jornalistas, a
necessidade de traçarem uma agenda própria, tão submissa e cordata tem sido a
imprensa, com a exceção honrosa de raras teimosias de insubmissão.
Quando refiro os atuais governantes, não me cinjo nem
ao tempo nem ao espaço; outros virão tão alvares como os que ainda se mantêm
com unhas, dentes e gavinhas no santuário blindado da sua incapacidade - e o
mesmo se passa por essa desencantada Europa fora. Os de cá não são
intelectualmente medíocres, culturalmente vazios e civicamente vadios por não
terem conseguido acompanhar os congéneres europeus. Nada: estudaram todos pelos
mesmos manuais em formato tabloide, fascículos diários de Metafísica dos
Costumes e Filosofia do Direito que cá pelo burgo vêm garridamente capeados de
Correio da Manhã e O Crime.
E como entram nisto os jornalistas que honram a
profissão? Não entram. Distanciam-se e denunciam. Como se apresentava uma
corajosa coleção de livros - o mais deles proibidos e retirados do mercado -
"quando a desordem se torna ordem, uma atitude se impõe: afrontamento".
Era esse o nome da editora, é essa a consigna dos tempos de que nos
envergonhamos.
Tudo às avessas: o que deveria estar ao acesso do
público ou de setores da população é-lhes negado; e aquilo que deveria ser
retirado da esfera pública, porque é privado ou íntimo, é colocado à disposição
da curiosidade mórbida ou pérfida. Compete aos jornalistas revelar o que se
esconde e publicar o que deveria ser exposto.
Os jornalistas já deixaram sem explicação e denúncia
como é que Portugal se transformou no campeão das rotundas - e quanto alcatrão
ficou agarrado a certos dedos, para serem limpos com muitas notas. Agora, ficam
prevenidos e atentos aos pelourinhos onde vão ser expostos, à medieval, os
condenados sem julgamento, sentenciados por leis de um poder apostado em gerar
uma sociedade histérica e tabloide - com o pretexto de "também se faz lá
fora", nessa vergonhosa sociedade tribal de vizinhos que se invadem e se
chacinam uns aos outros na dita Europa.
Dois exemplos do que deveria ser conhecido e é
sonegado: o ministro Nuno de Santo Estaline Crato - pode esquecer-se a
matemática, mas o estalinismo inoculado na madrassa éme-éle é mais indelével do
que uma tatuagem perante o laser e o seu sintoma são as unhas enterrarem-se na
cadeira que se abarbata à custa de muita casaca virada e muita mesura - não
publica as listas de colocações de professores. Estão nas escolas, diz o
comissário contra o povo. Pois. Os professores concorreram a nível nacional
mas, para saberem se houve batota ou simples erro, têm de ir a centenas de
escolas e investigar por sua conta. Segredo de Estado! Deve ser "como se
faz lá fora"...
O primeiro-ministro diz que não faz striptease da sua
conta bancária. Certo. Mas, acho eu, ninguém quer saber se gastou o dinheiro
que recebeu a comprar slips fio dental, lantejoulas, plumas ou varões para se
despir langorosamente na intimidade aos requebros de um kuduro. A única coisa a
mostrar é a lista do que recebeu, já que, exercendo cargos públicos, a coluna
do que entrou na sua conta bancária deveria ser mostrada - e eu sempre defendi
que essa declaração fosse reservada e não enchesse a gorja dos tabloides para
fazerem o top ten dos mais ricos, pondo em risco a segurança dos filhos e
familiares, por se tornarem um chamariz para os raptores. Mas a lei é imbecil, feita
por políticos imbecis e conluiados com o tabloidismo - aquelas cabeças não dão
para mais, coitadas - e que fazem vida de se queixarem dos tabloides que os
cercam. Deve ser "como se faz lá fora"...
A ministra da Justiça é caso perdido. Acha que as visitas
aos tribunais são sua "agenda privada", de que se recusa dar conta e
permite-se interpelar um deputado com "o que é que o senhor fez pelo
país?", ignorando que é o deputado quem lhe pede contas e não ao
contrário.
Nem sequer percebe o que legisla ou o que quer
legislar. É uma "Maria vai com o que se faz lá fora e, para dares um toque
de sal à portuguesa, mete uma bojarda tua, que fica bem". Tem a ver com as
listas dos que cumpriram a pena por pedofilia. "Lá fora" acha-se
legítimo um patrão conhecer o passado penitenciado de um candidato ao emprego e
recusá-lo por tais ou outros antecedentes. A ministra acrescenta uma
"prevenção": os pais dos jovens com menos de 16 anos também têm o
direito a conhecer. Não podem revelar o que sabem - num país em que o segredo
de justiça é cumprido quando os reis fazem anos bissextos! Como a senhora, que
se cultivou no confronto dos Irmãos Metralha com o Tio Patinhas, cuja leitura
não lhe dava cãibras nos beiços, não consegue imaginar pais de crianças que as
lançaram no negócio do sexo a troco de dinheiro. Agora a criativa governante
quer dar rédea solta à chantagem. Uma coisa é a polícia ter a lista dos
"suspeitos do costume" - o que já é dissuasor quanto possível numa
sociedade em que os fins não justificam todos os meios - e outra é cortar a
possibilidade de regeneração de quem cumpriu pena, estigmatizando-o
publicamente. Deve ser "como se faz lá fora" - e se fez mesmo, com
estrela cosida no casaco...
Agora assoma da casca o chefe da ASAE, que nunca se
notabilizou por apanhar bancos agiotas e lavadores de dinheiro (está nas suas
competências legais), mas que já entalou muita leitaria de bairro. Quer fazer
uma lista negra de estabelecimentos detetados em incumprimento, autuados e
obrigados a corrigir as carências. Disse o cavalheiro ao DN: "Era uma
maneira de devolver (?) ao operador económico um estímulo pela negativa no
sentido de querer sair da lista e, portanto, introduzir alterações." Não
basta a contraordenação, que vai até ao encerramento; é preciso colocar no
pelourinho da má fama a leitaria onde a colher de pau foi utilizada para mexer
a sopa e a caldeirada. Deve ser "como se faz lá fora".
[*]Provedor do leitor do Diário de Notícias
Texto publicado em http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4173773&seccao=%D3scar Mascarenhas
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