O QUE ELES ESCONDEM

terça-feira, 14 de outubro de 2014


 

As desigualdades de vida e morte

Por Vicenç Navarro*

Uma das situações mais preocupantes que estão, hoje, a acontecer no mundo é a existência de grandes desigualdades em indicadores sociais tão importantes como os anos de vida e a idade de morte das pessoas pertencentes a distintos países e a diferentes classes sociais dentro de cada país. A disparidade na esperança de vida (isto é, os anos que se calcula que uma pessoa viverá) entre países pobres e países ricos é conhecida e merece atenção mediática. O facto de que um cidadão da Serra Leoa, em África, viva em média 27 anos menos que uma pessoa no Japão é um dado importante, mobilizador da comunidade internacional que se considera sensível aos direitos humanos, entre os quais o direito à vida é um dos centrais (ver Therborn, G., The Killing Fields of Inequality, Polity Press, 2013). Mas, o que se conhece e reconhece menos são as enormes diferenças existentes na esperança de vida dentro dos países, tanto ricos como pobres, diferenças que, em ocasiões, são inclusive maiores que as existentes entre países ricos e países pobres. Assim, segundo Therborn, em estudos epidemiológicos levados a cabo com grande rigor na cidade escocesa de Glasgow, verificou-se que a diferença da média de anos de vida entre os bairros mais pobres e os mais ricos daquela cidade industrial da Escócia é de 28 anos, um número maior que a diferença existente entre o Japão e Serra Leoa. Inclusivamente, na Suécia, um dos países com menos desigualdades sociais da União Europeia dos Quinze (EU-15), a diferença da média de anos de vida entre os bairros ricos e os pobres é maior que a existente entre a Suécia (país rico) e o Egipto (país pobre). Em Espanha, tais diferenças de esperança de vida também se dão. Uma pessoa que vive no bairro rico de Sant Gervasi, na cidade de Barcelona, vive oito anos mais que uma pessoa que vive num bairro operário, como o Raval, na mesma cidade.
E esta diferença – como também escreve Therborn – tem estado a aumentar, em parte como consequência de que, em geral, a população mais rica tem vindo a viver mais anos. Mas, esta não é a única causa. Em muitos países, outra causa é a de que os anos de vida das classes menos ricas têm-se reduzido, o que tem pouca visibilidade mediática. Na realidade, o crescimento tão maciço do desemprego, que está a ter lugar na Europa, (e que adquire a sua máxima expressão nos países do sul da Europa, como Espanha) tem um impacto negativo nos anos de vida da população, primordial mas não exclusivo entre sectores da população como a inactiva e a desempregada. Isto está a ocorrer inclusive em alguns países escandinavos do norte da Europa, como a Finlândia. Na realidade, calculou-se que, como consequência da crise actual, houve na Europa um aumento de 8.000 suicídios (desde o início da crise de 2007 a 2010). Assim, extrapolando estes dados para o período de 2015-2019, calculou-se que, somando outras causas de morte além do suicídio, haverá um aumento da mortalidade de mais de 235.000 mortes, e isso como consequência da continuação da crise, a mesma crise que, calcula-se provocará um aumento de 9,5 milhões de desempregados durante o mesmo período.

Por que razão isto ocorre?

Não é necessário dizer que tem havido muitos trabalhos científicos orientados para a análise do porquê da taxa de variação da mortalidade segundo a localização da população na escala social (isto é, segundo a classe social à qual as pessoas pertencem). A grande maioria dos estudos centrou-se nas diferenças de comportamento que existem entre classes sociais, em hábitos de vida tais como fumar, a dieta, o exercício físico e outros factores considerados, com razão, variáveis importantes para explicar a esperança de vida de um indivíduo. Mas, o que é muito mais importante e muito menos conhecido é que estes factores, embora importantes, são dramaticamente insuficientes para explicar as diferenças de esperança de vida que existem na população. Na realidade, quando se compara a esperança de vida da população que tem os mesmos hábitos (isto é, que come igual, que fuma igualmente, que faz o mesmo exercício e outros factores que influenciam os anos de vida de uma pessoa), agrupando as pessoas pela sua classe social, vê-se que a taxa de variação da mortalidade, por classe social, continua. A influência dos hábitos de uma pessoa para explicar os seus anos de vida é menor do que a que tem a sua posição na escala social. E visto que a grande maioria da população morre na mesma classe social em que nasceu, a variável mais importante para explicar a esperança de vida é a classe social na qual o indivíduo nasce e à qual pertence.
Isto explica que se tenham feito estudos para averiguar o que há nesta situação que explique a mortalidade diferencial por classe social. E é arrasadora a evidência existente de que uma das variáveis mais importantes para explicar diferentes médias de anos de vida está na sensação de controle e satisfação que a pessoa tem sobre os elementos chave da sua vida, tal como o trabalho que exerce. A possibilidade de criatividade que esse trabalho permite, o sentimento de se ser tratado justa ou injustamente, a ajuda e apoio, assim como a segurança laboral e protecção social que se recebe, são factores mais importantes para explicar a esperança de vida do que os hábitos que as pessoas têm.

Esta evidência existe desde há anos. Já nos anos 70, nos EUA, estudos dos centros de investigação sanitária mais importantes do país (os famosos NIH) mostraram que a variável mais importante para explicar a esperança de vida das pessoas (acima dos 65 anos) era a satisfação que tinham tido com o trabalho que fizeram ao longo da sua vida.
Apesar da evidência acumulada durante todos estes anos, pouco se fez a este respeito, nos dois lados do Atlântico Norte. E a razão para explicar esta escassa atenção é a de que as políticas públicas que se requerem para aumentar a esperança de vida passam, não só por mudanças nos hábitos de consumo e estilo de vida, mas também por mudanças nas relações de poder, baseadas mais no mundo do trabalho e da produção do que na área do consumo. São soluções que requerem respostas colectivas, mais que individuais, e que afectam as coordenadas de poder existentes num país. Para os stablishments financeiros e económicos (que têm uma enorme influência política e mediática) é mais fácil e menos conflitivo dizer ao cidadão que tem de deixar de fumar do que ter que alterar as relações de poder no mundo da produção (ao que, claramente, se oporão tais stablishements). Dizer-lhe que tem que se organizar e mobilizar-se para conseguir mais poder na sociedade, mudando, por exemplo, a natureza do trabalho, para que este se converta num instrumento de prazer e criatividade, em vez de instrumento para permitir a optimização dos interesses dos que controlam o trabalho, é outra conversa. Daí que se dê muito mais prioridade a campanhas anti-tabagismo (que são úteis e necessárias) do que a intervenções públicas direccionadas a reduzir as desigualdades baseadas na pertença social das pessoas e na natureza do seu trabalho, além do seu consumo (que são inclusive mais importantes) E isto apesar de que, como documentaram Joan Benach, Carme Borrell, Carles Muntaner, Montse Bergara e outros investigadores espanhóis, conseguir que as pessoas com rendimentos inferiores tivessem as mesmas taxas de mortalidade que as pessoas com rendimentos superiores permitiria salvar mais vidas do que se se conseguisse que toda a gente deixasse de fumar. Em ciência, há temas mais prioritários que outros, devido às relações de poder (incluídas as de classe social, além das de género) existentes num país.
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*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University.
Texto original em http://www.vnavarro.org/?p=11194

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