O QUE ELES ESCONDEM

sábado, 18 de outubro de 2014


AS CAUSAS ECONÓMICAS E POLÍTICAS DA EPIDEMIA DE ÉBOLA

Por Vicenç Navarro *

O Centro para o Controle de Doenças (CDC, Center for Disease Control) do governo federal dos EUA, um dos centros de maior prestígio e reconhecimento internacional, pertencente ao Serviço de Saúde Pública (U.S. Public Health Service) do dito governo, publicou, no mês passado, um relatório sobre a epidemia criada pelo vírus do Ébola, onde se dizia que “os casos de Ébola poderiam expandir-se numa quantidade que podia variar de 550.000 casos a 1,4 milhões, nos primeiros quatro meses”. O mesmo relatório pôs em causa os números proporcionados pela Organização Mundial de Saúde (OMS, a agência de saúde das Nações Unidas) sobre o número de casos da doença causada pelo vírus do Ébola (5.800 casos) e o número de mortos (2.800 casos). O CDC dizia que, provavelmente, os números serão muito maiores, à roda de 20.000 casos de infectados com a doença. E sublinhava que era provável que o número de novos casos de infectados e de mortos aumentasse exponencialmente, passando de centenas a milhares por semana. O CDC indicava, também, que, hoje, a epidemia se centra em três países da África Ocidental, Libéria, Serra Leoa e Guiné, onde as infraestruturas de higiene, saúde pública e serviços sanitários são muito deficientes, tendo piorado nos últimos anos, em consequência das políticas de austeridade da despesa pública, incluindo a despesa pública com a saúde, impostas a estes governos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, instituições  conhecidas pelas suas políticas de “ajuda ao desenvolvimento”, que se centram, entre outras medidas, na redução da despesa pública para reduzir o défice e a dívida públicos. Estas políticas de austeridade, que estão a ter um impacto muito negativo no bem-estar da população, nos países da Eurozona, têm um impacto devastador na saúde e qualidade de vida das populações africanas expostas a tais políticas.

Como e onde se iniciou a epidemia de Ébola

A epidemia actual iniciou-se na Guiné, em finais de 2013. Porém, não foi notícia até Março do ano seguinte, 2014. É uma das infecções mais mortais que se conhecem. Quer dizer, a mortalidade entre os enfermos de Ébola é muito maior do que é costume acontecer com outras doenças infecciosas. O vírus do Ébola, os seus efeitos e como poderia curar-se está menos desenvolvido e conhecido que outros vírus causadores de outras doenças mais conhecidas nos países mais desenvolvidos economicamente. Como indicava um artigo na revista International Journal of Infections Diseases, “este vírus é dos que se conhecem menos da família de vírus a que pertence. Há uma grande ignorância sobre este vírus…” E isto acontece apesar da existência e elevada letalidade do vírus ser muito acentuada.

O primeiro caso que se conhece do Ébola, segundo o CDC, foi detectado no antigo Zaire, no ano de 1976, onde se iniciou a sua transmissão, como consequência das condições muito pouco higiénicas dos serviços hospitalares daquele país, com a utilização de seringas pobremente esterilizadas. Um novo surto registou-se no Sudão, em 1979, com 34 infectados e 22 mortos. E, mais tarde, houve outro, de novo, no Zaire. O escasso conhecimento do comportamento e natureza do vírus explica que não se tenha elaborado fármacos que possam curar a doença, situação muito comum em doenças que existem com muito maior frequência nos países chamados pobres. A indústria farmacêutica não presta atenção a doenças e doentes que não são rentáveis. Existem muitos casos como este. E a bem conhecida insensibilidade dos Estados dos países ricos relativamente ao bem-estar das populações dos países chamados pobres explica a escassa atenção a este tipo de doenças, ao considerarem, erradamente, que não os afectará. A SIDA demonstrou, contudo, o erro deste pressuposto. Mas, a esta insensibilidade há que juntar a sua considerável responsabilidade na existência e permanência da pobreza nestes países. É aí que está o cerne da questão, o que raramente aparece nos maiores meios de informação.

As causas políticas e económicas da epidemia do Ébola

A maioria das economias destes países africanos está, em grande parte, nas mãos de grupos financeiros e económicos que obtêm a sua riqueza destes países, sem que esta riqueza seja canalizada para o resto da população. O total da população que vive nestes países (Libéria, Serra Leoa e Guiné) é aproximadamente de 20 milhões de pessoas. O seu principal meio de produção é a terra, constituindo os produtos minerais e agrícolas a sua maior riqueza, a qual, contudo, está principalmente em mãos de proprietários de empresas transnacionais (também conhecidas, erradamente, como multinacionais) que extraem a dita riqueza sem que, com isso, a população enriqueça. Os lucros vão para o país sede dessas transnacionais. Aqueles países não são, portanto, países pobres, pois têm muitos produtos enormemente valiosos. Em contrapartida, a grande maioria da população que trabalha no campo vive em condições misérrimas (ver Tariq Ali and Allyson Pollok, “The Origins of Ebola Crisis”, CounterPunch, 12.10.14, e também Horace G. Campbell, “Ebola, the African Union and Bioeconomic Warfare”, CounterPunch, 12.10.14). Em quase nenhuma das informações sobre o Ébola, aparecidas na maioria dos meios de informação, se falou das causas profundas da epidemia de Ébola nestes países, sendo a primeira a enorme miséria da grande maioria da população, resultado da aliança entre as elites governantes destes países, por um lado, e os interesses económicos e financeiros que controlam as suas economias, por outro. E, todas as vezes que há mobilizações políticas para acabar com tais estruturas, os governos dos países ricos (sumamente influenciados por aquelas transnacionais) enviam tropas ou ajuda militar para que o sistema de poder permaneça intacto. É esta, repito, a realidade que explica a pobreza dos países erroneamente chamados pobres (veja-se o meu livro Imperialism, Health and Medicine, Baywood, 1981).

A enorme pobreza explica a segunda causa do aparecimento desta epidemia maciça: a pobreza da infraestrutura dos serviços sanitários, de saneamento e de saúde pública. Estes países têm uma estrutura de salubridade e sanitária muito insuficiente, estrutura que se tem debilitado dramaticamente como consequência das políticas neoliberais do FMI, impostas à maioria dos países africanos, incluindo estes três (Libéria, Serra Leoa e Guiné). Tais políticas têm um impacto desastroso nesses países, cujos gastos públicos com a saúde por habitante são, juntamente com os do Bangladeche e Haiti, os mais baixos do mundo. E, inclusivamente, estão a reduzir-se mais, como consequência das políticas de austeridade (com os cortes na despesa pública social, incluindo a saúde), impostas pelo FMI, para a redução da dívida pública, e isto como condição para que possam receber dinheiro emprestado para estimular a economia (veja-se os artigos no International Journal of Health Services, volumes 39 e 40, anos 2009 e 2010, sobre o impacto do FMI na saúde dos países pobres).

Estas políticas neoliberais do FMI, que estão a causar o enorme empobrecimento do sector público, incluindo as infraestruturas de saneamento e sanitárias públicas, têm um impacto muito negativo nos países mais desenvolvidos economicamente (o serviço de doenças infecto-contagiosas, do Hospital Carlos III, em Madrid, onde agora está internada a enfermeira contagiada com o Ébola, tinha sido encerrado, como consequência dos cortes na despesa pública, resultado das políticas de austeridade da Comunidade de Madrid e do governo Rajoy), e têm também um impacto, repito, devastador nos países erradamente chamados pobres (como a Libéria, Serra Leoa e Guiné).

É, igualmente, importante sublinhar que, nestes países, tal como acontece em Espanha, os serviços de saúde estão altamente estratificados por classe social, com uma medicina privada para as classes ricas (dependentes dos interesses transnacionais), que controlam a vida política e mediática do país. A pobreza da despesa pública estimulou o enorme crescimento da privatização, que contribui para a pobreza do sistema público. Hoje, em Espanha, estamos a ver o debilitamento das grandes unidades de saúde, à custa da expansão da medicina privada. Esta situação repete-se nos países africanos, com resultados catastróficos. À enorme pobreza da grande maioria da população, junta-se a enorme insuficiência da sua infraestrutura sanitária e de saneamento. Na realidade, o que acontece nos países erradamente chamados pobres é muito semelhante ao que acontece nos países “ricos”, embora os resultados sejam imensamente piores, devido à enorme pobreza naqueles países. Hoje, na Libéria, Serra Leoa e Guiné, os doentes com Ébola são recusados nos hospitais e morrem na rua, em plena luz do dia.

A resposta à crise actual

A resposta à crise naqueles países africanos foi, previsivelmente, muito lenta. E quando teve lugar, pediu-se urgentemente recursos humanos e dinheiro. Só para a Serra Leoa, o governo pediu 1.000 médicos e 3.000 enfermeiros. E a OMS indicou que são necessárias 4.300 camas de hospital, para tratar todos os doentes com Ébola, nestes três países (Libéria, Serra Leoa e Guiné), mais de dez vezes o número total de camas existentes nestes países. Os primeiros países a responder foram Cuba e China (Cuba, por certo, foi sempre exemplar na sua resposta aos pedidos de ajuda, tal como sublinhou, a seu tempo, o Presidente Mandela da África do Sul). Cuba foi o primeiro país que respondeu, enviando imediatamente 165 médicos e profissionais, ajuda especialmente valiosa, pois Cuba, apesar da sua pobreza económica, tem um dos programas mais avançados do mundo contra doenças infecciosas, como reconheceram, não só a OMS, mas também a Associação Americana de Saúde Pública, APHA. A China enviou 200 profissionais de saúde e, por fim, o governo Obama enviará 3.000.

Esta ajuda em pessoal é de uma grande urgência. Mas, dita ajuda será paliativa e não resolutiva, a não ser que haja mudanças maciças dirigidas a atacar as causas da epidemia de Ébola a que me referi neste artigo, a saber: a miséria da população que vive e trabalha nestes países e a grande insuficiência das suas infraestruturas de salubridade, de saneamento e sanitárias. A não ser que isto ocorra, as epidemias de Ébola ir-se-ão repetindo.

É evidente que tais epidemias podem controlar-se e assim está a acontecer inclusive nos países vizinhos dos três mais afectados (Libéria, Serra Leoa e Guiné). A Nigéria e o Senegal, por exemplo, parecem ter contido a epidemia. O Ébola é muito letal. Mas, não é muito contagioso. Na realidade, é das menos contagiosas de entre as doenças virais. E é muito pouco provável que, como ocorreu com a SIDA, se expanda nos países ricos. Isto poderia suceder, mas a infraestrutura sanitária dos países desenvolvidos é suficientemente avançada para poder controlar a difusão da doença. Mas, este pressuposto tão-pouco é definitivo, pois o desmantelamento dos serviços públicos de saúde a que estamos a assistir, inclusive na EU (muito visível em Espanha), pode diluir e debilitar esta garantia, de forma alarmante, como aconteceu em Espanha.

O neoliberalismo foi a causa desta possibilidade, tanto nos países da Africa Ocidental, como nos do sul da Europa.

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*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University.

Texto original em http://www.vnavarro.org/?p=11440 


Nota do tradutor:

Algumas riquezas da Libéria: principal produtor mundial de borracha, além de exportador de diamantes e ouro. Ocupa o 174º lugar, num total de 187 países, no Índice do Desenvolvimento Humano (IDH) em 2012, do relatório das Nações Unidas, publicado em 2013.

Algumas riquezas da Serra Leoa: diamantes; um dos maiores exportadores de titânio e de Bauxita; 3º maior porto natural do planeta. 177º lugar no IDH. (O filme do realizador Edward Zwick, “Diamante de Sangue” retrata bem como se transforma um país riquíssimo, a Serra Leoa, num dos mais pobres do mundo).

Algumas riquezas da Guiné-Conacri: grandes reservas de ferro e um terço das reservas mundiais de bauxita; grandes depósitos de diamantes e ouro; quantidades ainda indeterminadas de urânio; terra, água e condições climáticas excepcionais para a agricultura e pesca. 178º lugar no IDH.

Algumas riquezas da República Democrática do Congo, antigo Zaire: de todas as reservas mundiais, possuiu 34% de cobalto, 10% de cobre, ouro, urânio e petróleo, 50% de coltan (componente essencial de computadores e telemóveis); cotas relevantes de diamantes, cassiterita e nióbio; maiores recursos hídricos de toda a África. 90% da população não tem acesso à electricidade. O orçamento deste país é apenas um pouco maior do que o montante anual das despesas operacionais das 2.700 pessoas empregadas no FMI, organização que obriga este país a entregar 50% das suas receitas para o serviço da dívida. 186º lugar no IDH.

Se não houvesse esta pilhagem de recursos, não haveria epidemias de Ébola, nem tão-pouco uma emigração maciça e as consequentes mortes no Mediterrâneo.

 

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