Cavaco Silva, num dos
seus brilhantes discursos, desta vez, no 5 de Outubro, culpou os partidos e a
organização do sistema político pela insatisfação dos portugueses com a
democracia, apelando a uma “reflexão séria” e a “compromissos” para “mudanças
efectivas”.
Esquecendo o facto de
esta luminária ser o político profissional com mais anos no activo, desde
dirigente partidário a primeiro-ministro e, agora, segundo dizem, Presidente da
República, sendo, portanto, um dos principais culpados pelo descrédito na
política em que caiu a maioria dos portugueses, a verdade é que, consciente ou
inconscientemente, desvia a atenção da verdadeira causa da abstenção dos
eleitores e do alheamento da maioria da população.
Se é verdade que a
corrupção, a mentira, os privilégios, a impunidade de muitos políticos (não
todos, como querem fazer crer) é uma realidade (coisa a que Cavaco não se
referia, mas, sim, às leis eleitorais), o que leva muita gente a não participar
na vida política é o facto de sentirem, cada vez mais, que as decisões são
tomadas em instâncias supranacionais, dizendo-lhes que não têm outra coisa a
fazer senão obedecer. É isto que todos repetem, quer Cavaco, quer os partidos da
direita, PS incluído, ou outros, pertencentes ao mesmo bando, como o Presidente
do Banco de Portugal. Este último, o tal que afiançou, na véspera do colapso do
BES, que o BES era um banco de confiança. E, para não destoar, no sábado,
voltou a repetir o estribilho de que cumprir o défice (exigido pela Comissão
Europeia, pela Merkel, pelo BCE, pelo FMI) é “crucial”. Nem seria de esperar
outra coisa de um indivíduo, “filho da pátria” como alguém já o apelidou, com o
currículo que tem (ver biografia na página do Banco de Portugal) e num país
onde o conflito de interesses não conta.
Ora, é este discurso e
esta prática que levam os portugueses menos informados a resignarem-se com um “tem
que ser, o que é que se há-de fazer!”.
O texto de Fernando
Luengo aponta estes dois factos – “a desvalorização das instituições de
representação formal [os parlamentos nacionais, por ex.] e os partidos
políticos, como espaços de representação política” – como estratégia pensada,
no sentido de aumentar o domínio de uma oligarquia que se quer todo-poderosa,
sem os entraves da democracia, por mais limitada que seja.
Um novo capitalismo,
mais oligárquico e autoritário
Por Fernando Luengo*
A gestão que vem sendo feita da crise económica dentro da
União Económica e Monetária está a criar as condições, se não as criou já, para
uma viragem substancial na configuração sistémica dos capitalismos europeus.
Viragem que se iniciou muito antes da implosão financeira, pelo menos desde que
se impôs por todo o lado a doutrina neoliberal, a partir da década de 80 do
século passado, mas que, nos últimos anos, alcançou maior envergadura e
visibilidade.
O protagonismo da Troika – sob esta denominação reúnem-se
três instituições de carácter intergovernamental, a Comissão Europeia, o Banco
Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional -, que impôs as suas
políticas aos governos, parlamentos e cidadãos, e a centralidade adquirida pela
Alemanha, que fez valer e ilpor os seus interesses e os dos seus aliados,
transpondo-os para as instâncias comunitárias, constituem dois elementos
essenciais de um processo de maior amplitude, calado e transcendência, que está
a propiciar uma transformação estrutural dos equilíbrios, consensos e relações
de poder.
Algumas das componentes básicas dessa transformação são: a
desvalorização das instituições de representação formal e dos partidos
políticos como espaços de representação política, a contaminação e ocupação da
política por parte dos grupos económicos e a degradação do estatuto
socio-económico e político de uma parte da classe média.
Deste modo, rompida a maior parte dos diques de contenção
social e política, está a produzir-se um histórico desmantelamento dos Estados
de Bem-estar – que, supostamente, eram o principal emblema das “economias
sociais de mercado” comunitárias -, um questionamento profundo do papel dos
Estados como pedras angulares de um consenso social integrador e o debilitamento
ou desaparecimento das pontes institucionais que, no passado, antes do colapso
financeiro, tornaram possível uma certa redistribuição do rendimento.
Essa refundação sistémica alcança também os próprios
alicerces do processo de acumulação. Consolidaram-se, nestes anos de
decrescimento ou crescimento débil, mecanismos de extracção de rendimentos e
riqueza das classes trabalhadoras paras as oligarquias. É neste contexto que é
necessário situar a redução dos salários nominais e reais de boa parte dos
trabalhadores, o alargamento do horário de trabalho e a intensificação dos
ritmos na execução das tarefas. O desequilíbrio na relação de forças a favor do
capital e contra o trabalho (propiciado pelas reformas laborais, o temor a
perder e não recuperar o emprego, pelo contínuo aumento do desemprego ou pela
permanente ameaça de proceder ao encerramento e deslocalização da empresa)
abriu uma via de acumulação a partir da sobre-exploração dos assalariados. Em direcção idêntica, um
maciço transvase de recursos para as elites, apontam as políticas de
ajustamento orçamental e os diferentes programas, postos em marcha para
resgatar os grandes bancos e sanear os seus balanços, programas que supuseram
uma enorme sangria das arcas públicas.
Está a assistir-se, adicionalmente, a uma ampla
reorganização dos mercados, proporcionada pela recentralização da estrutura
empresarial, pela entrada do sector privado e das lógicas mercantis em parcelas
crescentes do público, através das privatizações e da externalização da gestão,
e a uma abertura de novos nichos de negócio a partir dos espaços deixados por
aquelas empresas que, por carecerem de financiamento ou por se enfrentarem a
uma incerta evolução da procura, reduziram a escala das suas operações ou
desapareceram.
Somemos a tudo isto, para dispor de uma visão completa da
profunda reestruturação do capitalismo que está a ter lugar, a implementação de
uma política monetária laxista, que entrega recursos a quem tem capacidade de
endividamento, contribuindo para o fortalecimento do segmento financeiro da
economia, que, no que diz respeito a privilégios, opacidade e potencial
desestabilizador, permaneceu basicamente intacto.
Resumindo, estamos a ser testemunhas de uma refundação dos
capitalismos europeus (melhor que a confusa expressão “refundação europeia”), à
medida dos interesses e estratégias dos grupos económica e socialmente
privilegiados e dos países com maior potencial competitivo, que supõe o reforço
do perfil oligárquico do projecto comunitário. E a união monetária não só está
a ser o cenário, mas também, por acção ou omissão, está a facilitar esta
mudança sistémica.
__________
*Professor de
Economia Aplicada da Universidade Complutense de Madrid
Texto original em http://blogs.publico.es/econonuestra/2014/10/03/un-nuevo-capitalismo-mas-oligarquico-y-autoritario/
Texto original em http://blogs.publico.es/econonuestra/2014/10/03/un-nuevo-capitalismo-mas-oligarquico-y-autoritario/
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