O QUE ELES ESCONDEM

segunda-feira, 6 de outubro de 2014


Cavaco Silva, num dos seus brilhantes discursos, desta vez, no 5 de Outubro, culpou os partidos e a organização do sistema político pela insatisfação dos portugueses com a democracia, apelando a uma “reflexão séria” e a “compromissos” para “mudanças efectivas”.
Esquecendo o facto de esta luminária ser o político profissional com mais anos no activo, desde dirigente partidário a primeiro-ministro e, agora, segundo dizem, Presidente da República, sendo, portanto, um dos principais culpados pelo descrédito na política em que caiu a maioria dos portugueses, a verdade é que, consciente ou inconscientemente, desvia a atenção da verdadeira causa da abstenção dos eleitores e do alheamento da maioria da população.

Se é verdade que a corrupção, a mentira, os privilégios, a impunidade de muitos políticos (não todos, como querem fazer crer) é uma realidade (coisa a que Cavaco não se referia, mas, sim, às leis eleitorais), o que leva muita gente a não participar na vida política é o facto de sentirem, cada vez mais, que as decisões são tomadas em instâncias supranacionais, dizendo-lhes que não têm outra coisa a fazer senão obedecer. É isto que todos repetem, quer Cavaco, quer os partidos da direita, PS incluído, ou outros, pertencentes ao mesmo bando, como o Presidente do Banco de Portugal. Este último, o tal que afiançou, na véspera do colapso do BES, que o BES era um banco de confiança. E, para não destoar, no sábado, voltou a repetir o estribilho de que cumprir o défice (exigido pela Comissão Europeia, pela Merkel, pelo BCE, pelo FMI) é “crucial”. Nem seria de esperar outra coisa de um indivíduo, “filho da pátria” como alguém já o apelidou, com o currículo que tem (ver biografia na página do Banco de Portugal) e num país onde o conflito de interesses não conta.
Ora, é este discurso e esta prática que levam os portugueses menos informados a resignarem-se com um “tem que ser, o que é que se há-de fazer!”.

O texto de Fernando Luengo aponta estes dois factos – “a desvalorização das instituições de representação formal [os parlamentos nacionais, por ex.] e os partidos políticos, como espaços de representação política” – como estratégia pensada, no sentido de aumentar o domínio de uma oligarquia que se quer todo-poderosa, sem os entraves da democracia, por mais limitada que seja.

 
Um novo capitalismo, mais oligárquico e autoritário

Por Fernando Luengo*

A gestão que vem sendo feita da crise económica dentro da União Económica e Monetária está a criar as condições, se não as criou já, para uma viragem substancial na configuração sistémica dos capitalismos europeus. Viragem que se iniciou muito antes da implosão financeira, pelo menos desde que se impôs por todo o lado a doutrina neoliberal, a partir da década de 80 do século passado, mas que, nos últimos anos, alcançou maior envergadura e visibilidade.
O protagonismo da Troika – sob esta denominação reúnem-se três instituições de carácter intergovernamental, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional -, que impôs as suas políticas aos governos, parlamentos e cidadãos, e a centralidade adquirida pela Alemanha, que fez valer e ilpor os seus interesses e os dos seus aliados, transpondo-os para as instâncias comunitárias, constituem dois elementos essenciais de um processo de maior amplitude, calado e transcendência, que está a propiciar uma transformação estrutural dos equilíbrios, consensos e relações de poder.

Algumas das componentes básicas dessa transformação são: a desvalorização das instituições de representação formal e dos partidos políticos como espaços de representação política, a contaminação e ocupação da política por parte dos grupos económicos e a degradação do estatuto socio-económico e político de uma parte da classe média.
Deste modo, rompida a maior parte dos diques de contenção social e política, está a produzir-se um histórico desmantelamento dos Estados de Bem-estar – que, supostamente, eram o principal emblema das “economias sociais de mercado” comunitárias -, um questionamento profundo do papel dos Estados como pedras angulares de um consenso social integrador e o debilitamento ou desaparecimento das pontes institucionais que, no passado, antes do colapso financeiro, tornaram possível uma certa redistribuição do rendimento.
Essa refundação sistémica alcança também os próprios alicerces do processo de acumulação. Consolidaram-se, nestes anos de decrescimento ou crescimento débil, mecanismos de extracção de rendimentos e riqueza das classes trabalhadoras paras as oligarquias. É neste contexto que é necessário situar a redução dos salários nominais e reais de boa parte dos trabalhadores, o alargamento do horário de trabalho e a intensificação dos ritmos na execução das tarefas. O desequilíbrio na relação de forças a favor do capital e contra o trabalho (propiciado pelas reformas laborais, o temor a perder e não recuperar o emprego, pelo contínuo aumento do desemprego ou pela permanente ameaça de proceder ao encerramento e deslocalização da empresa) abriu uma via de acumulação a partir da sobre-exploração  dos assalariados. Em direcção idêntica, um maciço transvase de recursos para as elites, apontam as políticas de ajustamento orçamental e os diferentes programas, postos em marcha para resgatar os grandes bancos e sanear os seus balanços, programas que supuseram uma enorme sangria das arcas públicas.

Está a assistir-se, adicionalmente, a uma ampla reorganização dos mercados, proporcionada pela recentralização da estrutura empresarial, pela entrada do sector privado e das lógicas mercantis em parcelas crescentes do público, através das privatizações e da externalização da gestão, e a uma abertura de novos nichos de negócio a partir dos espaços deixados por aquelas empresas que, por carecerem de financiamento ou por se enfrentarem a uma incerta evolução da procura, reduziram a escala das suas operações ou desapareceram.
Somemos a tudo isto, para dispor de uma visão completa da profunda reestruturação do capitalismo que está a ter lugar, a implementação de uma política monetária laxista, que entrega recursos a quem tem capacidade de endividamento, contribuindo para o fortalecimento do segmento financeiro da economia, que, no que diz respeito a privilégios, opacidade e potencial desestabilizador, permaneceu basicamente intacto.

Resumindo, estamos a ser testemunhas de uma refundação dos capitalismos europeus (melhor que a confusa expressão “refundação europeia”), à medida dos interesses e estratégias dos grupos económica e socialmente privilegiados e dos países com maior potencial competitivo, que supõe o reforço do perfil oligárquico do projecto comunitário. E a união monetária não só está a ser o cenário, mas também, por acção ou omissão, está a facilitar esta mudança sistémica.

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*Professor  de Economia Aplicada da Universidade Complutense de Madrid

Texto original em http://blogs.publico.es/econonuestra/2014/10/03/un-nuevo-capitalismo-mas-oligarquico-y-autoritario/

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