O QUE ELES ESCONDEM

quinta-feira, 5 de junho de 2014


A MÁQUINA DE PUNIR

Por Serge Halimi

O que aconteceu ao sonho europeu? Tornou-se uma máquina de punir. À medida que o funcionamento desta máquina se aperfeiçoa, instala-se a sensação de que elites que se sucedem umas às outras aproveitam cada crise para endurecer as suas políticas de austeridade e impor a sua quimera federal [1]. Este duplo objectivo suscita a adesão dos conselhos de administração e das salas de redacção. Mas, mesmo acrescentando a este reduzido grupo os rentistas alemães, alguns testas de ferro luxemburgueses e um bom número de dirigentes socialistas franceses, não se alarga grande coisa a base de apoio popular do actual «projecto europeu».
A União Europeia não pára de maltratar os Estados que não têm como preocupação prioritária reduzir o seu défice orçamental, inclusive quando o desemprego dispara. Como em geral eles objectam com grande modéstia e sem se fazerem rogados, a União impõe-lhes imediatamente um programa de rectificação que inclui objectivos quantificados quase até às décimas, acompanhado por um calendário de execução. Em contrapartida, quando um número crescente de doentes europeus são obrigados a renunciar a cuidados médicos por falta de recursos, quando a mortalidade infantil aumenta e o paludismo reaparece, como na Grécia, os governos nacionais nunca têm de temer a ira da Comissão de Bruxelas. Os «critérios de convergência», inflexíveis quando se trata de défices e endividamento, não existem em matéria de emprego, educação e saúde. No entanto, as coisas estão ligadas: cortar as despesas públicas significa quase sempre reduzir nos hospitais o número de médicos e racionar o acesso aos cuidados de saúde.

Mais do que «Bruxelas», exutório habitual de todos os descontentamentos, foram duas forças políticas que promoveram a metamorfose dos dogmas monetaristas numa servidão voluntária. Com efeito, desde há décadas que socialistas e liberais partilham entre si o poder e os lugares no Parlamento Europeu, na Comissão e na maior parte das capitais do Velho Continente [2]. Aliás, há cinco anos, o ultraliberal e defensor da guerra do Iraque José Manuel Durão Barroso foi reeleito presidente da Comissão Europeia a pedido unânime dos vinte e sete chefes de Estado e de governo da União, socialistas incluídos, apesar de todos reconhecerem nessa altura a mediocridade estrondosa do seu balanço.
Neste momento rivalizam para lhe suceder um social-democrata alemão, Martin Shultz, e um democrata-cristão luxemburguês, Jean-Claude Juncker. No passado dia 9 de Abril os dois «opuseram-se» num debate televisivo. Qual dos dois pensa que «o rigor é necessário para recuperar a confiança»? E qual lhe respondeu que «a disciplina orçamental é inevitável»? Foi a tal ponto que o primeiro, para quem as «reformas» impiedosas do seu camarada Gerhard Schröder constituem «exactamente o modelo» a seguir, deixou escapar o seguinte: «Eu não sei o que nos distingue». Seja como for, não é certamente a vontade de fechar o quartel económico europeu.

Sexta-feira 9 de Maio de 2014

Editorial de Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Maio de 2014
 
Notas
[1] Ler «Federalismo em marcha forçada», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Julho de 2012.

[2] A 7 de Julho de 2009, o Partido Popular Europeu (PPE, direita) e os socialistas assinaram um «acordo técnico» na sequência do qual o ultraconservador polaco Jerzy Buzek presidiu ao Parlamento Europeu de Julho de 2009 a Janeiro de 2012, e o social-democrata alemão Martin Schulz sucedeu-lhe.

 
 

 

 

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