A MÁQUINA DE PUNIR
Por Serge Halimi
O que aconteceu ao sonho europeu? Tornou-se uma
máquina de punir. À medida que o funcionamento desta máquina se aperfeiçoa,
instala-se a sensação de que elites que se sucedem umas às outras aproveitam
cada crise para endurecer as suas políticas de austeridade e impor a sua
quimera federal [1]. Este duplo objectivo suscita a adesão dos
conselhos de administração e das salas de redacção. Mas, mesmo acrescentando a
este reduzido grupo os rentistas alemães, alguns testas de ferro luxemburgueses
e um bom número de dirigentes socialistas franceses, não se alarga grande coisa
a base de apoio popular do actual «projecto europeu».
A União Europeia não pára de maltratar os Estados que
não têm como preocupação prioritária reduzir o seu défice orçamental, inclusive
quando o desemprego dispara. Como em geral eles objectam com grande modéstia e
sem se fazerem rogados, a União impõe-lhes imediatamente um programa de
rectificação que inclui objectivos quantificados quase até às décimas,
acompanhado por um calendário de execução. Em contrapartida, quando um número
crescente de doentes europeus são obrigados a renunciar a cuidados médicos por
falta de recursos, quando a mortalidade infantil aumenta e o paludismo
reaparece, como na Grécia, os governos nacionais nunca têm de temer a ira da
Comissão de Bruxelas. Os «critérios de convergência», inflexíveis quando se
trata de défices e endividamento, não existem em matéria de emprego, educação e
saúde. No entanto, as coisas estão ligadas: cortar as despesas públicas
significa quase sempre reduzir nos hospitais o número de médicos e racionar o
acesso aos cuidados de saúde.
Mais do que «Bruxelas», exutório habitual de todos os
descontentamentos, foram duas forças políticas que promoveram a metamorfose dos
dogmas monetaristas numa servidão voluntária. Com efeito, desde há décadas que
socialistas e liberais partilham entre si o poder e os lugares no Parlamento
Europeu, na Comissão e na maior parte das capitais do Velho Continente [2]. Aliás, há cinco anos, o ultraliberal e
defensor da guerra do Iraque José Manuel Durão Barroso foi reeleito presidente
da Comissão Europeia a pedido unânime dos vinte e sete chefes de Estado e de
governo da União, socialistas incluídos, apesar de todos reconhecerem nessa
altura a mediocridade estrondosa do seu balanço.
Neste momento rivalizam para lhe suceder um
social-democrata alemão, Martin Shultz, e um democrata-cristão luxemburguês,
Jean-Claude Juncker. No passado dia 9 de Abril os dois «opuseram-se» num debate
televisivo. Qual dos dois pensa que «o rigor é necessário para recuperar a
confiança»? E qual lhe respondeu que «a disciplina orçamental é
inevitável»? Foi a tal ponto que o primeiro, para quem as «reformas»
impiedosas do seu camarada Gerhard Schröder constituem «exactamente o
modelo» a seguir, deixou escapar o seguinte: «Eu não sei o que nos
distingue». Seja como for, não é certamente a vontade de fechar o quartel
económico europeu.
Editorial de Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Maio de 2014
Notas
[1] Ler «Federalismo
em marcha forçada», Le Monde diplomatique – edição portuguesa,
Julho de 2012.
[2] A 7 de Julho de 2009, o Partido Popular
Europeu (PPE, direita) e os socialistas assinaram um «acordo técnico» na
sequência do qual o ultraconservador polaco Jerzy Buzek presidiu ao Parlamento
Europeu de Julho de 2009 a Janeiro de 2012, e o social-democrata alemão Martin
Schulz sucedeu-lhe.
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