Imagem retirada do blogue Colectivo Prometeo (www.colectivoprometeo.blogspot.com) |
A abdicação do rei: o fim da Transição
desajeitada
A mensagem que
o establishment espanhol (isto é, a
estrutura de poder financeiro, económico, político e mediático) promoveu vinte
e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, e trinta e
seis anos de democracia, é que, como resultado de uma Transição exemplar, a
Espanha gozou de uma democracia comparável a qualquer democracia europeia
ocidental que, sob a direção e tutela do Rei de Espanha, atingiu níveis de
bem-estar e de qualidade de vida semelhantes, quando não melhores, que os do
resto da comunidade à qual a Espanha pertence, a União Europeia. O Rei, que
derivou o seu poder do que lhe foi dado pelo Ditador, foi o arquiteto das
instituições representativas e democráticas que, na realidade, significaram uma
rotura com o regime anterior. Até aqui a visão idealizada da Transição, da
democracia que produziu e do papel do Monarca nesse processo, visão que os
maiores meios de informação e persuasão repetiram constantemente durante estes
anos. A nula diversidade ideológica dos média (com uma discriminação acentuada
contra as esquerdas) explica que esta visão se tenha convertido na sabedoria
convencional do país.
Os dados, que
são teimosos, e que estão aí para aqueles que os queiram ver, mostram, porém, a
enorme falsidade desta visão. Em primeiro lugar, a Transição foi muito longe de
exemplar. Não foi, e também não podia sê-lo. Os herdeiros daqueles que deram o
golpe militar de 1936 e da ditadura que estabeleceu controlavam os aparelhos do
Estado. Capitaneados pelo Monarca, tinham todas as estruturas de poder – incluídos
os meios de comunicação – à sua disposição. Os sucessores dos que defenderam a
República, e foram vencidos pelos golpistas (que venceram com o apoio de Hitler
e de Mussolini) e, mais tarde, foram alvo de brutais represálias (por cada
assassinato político que levou a cabo Mussolini, Franco cometeu 10.000),
acabavam de sair da clandestinidade, da prisão e/ou do exílio. Não podia se dar
um desequilíbrio maior entre as direitas, lideradas pelo Rei, e as esquerdas,
que tinham liderado as forças democráticas na resistência à ditadura. Era
absurdo esperar que uma relação tão desequilibrada como a existente no período
1975-1978 entre a direita e a esquerda pudesse ter como resultado produtos – a
Transição e a democracia que estabeleceu – modelares. Na realidade, esse
desequilíbrio de forças criou uma democracia muito limitada, e um Estado do
Bem-estar dramaticamente insuficiente.
A democracia incompleta e o bem-estar
insuficiente
Há múltiplos
indicadores das insuficiências da democracia espanhola. Um, entre milhares, foi
a enorme proteção que os meios de comunicação sempre deram à figura do Rei. Em
nenhum outro país o Chefe do Estado foi tão promovido como em Espanha. Durante
muitíssimos anos não se pôde fazer uma crítica à Monarquia ou ao Monarca, e
também não se podia hastear a bandeira republicana. Recordaremos o facto lamentável,
vexatório e vergonhoso do Presidente das Cortes espanholas, o socialista José
Bono, de proibir os lutadores pela liberdade (defensores da República, contra
os fascistas golpistas, que tinham sido convidados a estar presentes nas
Cortes) de levarem bandeiras republicanas. Foi mais que simbólico que um socialista,
José Bono, propusesse essa proibição. A incorporação do socialismo espanhol àquele
Estado, através de leis que favoreciam o bipartidarismo, foi um elemento chave
para a reprodução daquele sistema democrático de tão pobre qualidade.
Outro indicador
da pouca qualidade do sistema democrático foi a escassíssima consciência social
do Estado espanhol. Trinta e cinco anos e meio de democracia, e a Espanha
continua a ter um dos gastos públicos sociais por habitante mais baixos da
UE-15, o grupo de países de maior riqueza da UE. O facto de a Espanha gastar
muito menos que a média da UE-15 nas transferências públicas (como as pensões públicas)
ou nos serviços públicos do Estado do Bem-estar (como a saúde, a educação, a
segurança social, a moradia social, os serviços domiciliares, as creches, e um
longo etcétera), deve-se precisamente à enorme influência que as classes mais
abastadas da sociedade têm sobre o Estado, um Estado que está entre os mais
pobres, mais corruptos e mais insensíveis às necessidades cidadãs da UE-15.
O fim desta etapa
Mas estamos
hoje a ver o fim desta Transição. Nunca antes, durante o período democrático, o
Estado espanhol tinha perdido tanta legitimidade. Hoje, a rejeição da população
às instituições democráticas e à classe política é generalizada. O famoso
slogan do movimento 15-M “Não nos representam” converteu-se num slogan
generalizado. A escassa qualidade democrática do Estado explica que os partidos
dirigentes (todos eles próximos ao establishment
financeiro e económico) levem a cabo políticas públicas (cortes do gasto público
social e redução dos salários) que não estavam nos seus programas eleitorais. A
falta de um mandato popular explica não só a indignação, como também a rejeição
e raiva diante de tais instituições. É importante sublinhar que esta rejeição não
se traduz numa animosidade para com a democracia, mas sim num protesto pela
constante tergiversação praticada pela classe política que a dirige. Hoje, o
declínio do bipartidarismo e a sua substituição por uma pluralidade de
partidos, nos quais a esquerda contestatária pode atingir a maioria com grande
apoio popular, representam uma ameaça à permanência desse regime. O descrédito
das instituições herdeiras da desajeitada Transição representa a sua principal
ameaça. Deriva daí o desejo de fazer mudanças significativas quanto às
personagens que a fizeram – tais como o Rei –, para apresentar a imagem de que
há uma transformação que os pode salvar do possível fim do regime. A abdicação
do Monarca em favor da figura de Felipe é um passo importante nesta direção.
O repto às forças democráticas
Hoje, é
maioritária a revolta e a rejeição da maioria da população ao Estado espanhol.
Todos os indicadores mostram que o establishment
político e mediático, radicado na capital do reino, está a perder a sua
capacidade de mobilização e persuasão. Os seus instrumentos, como os grandes
meios de informação, também atingiram níveis de falta de credibilidade nunca
vistos antes no período democrático. São cada vez mais vistos como porta-vozes
desse establishment. E o nível de
agitação é elevadíssimo. Há apenas uns meses, uns dois milhões de pessoas
reuniram-se em Madri nas Marchas da Dignidade, uma manifestação cheia de
bandeiras republicanas, hasteadas em pleno desafio às autoridades do Estado
central que proibira hasteá-las. Hoje está a ocorrer aquilo que a estrutura de
poder tem mais medo: que a população perca o medo. O aumento tão notável da
repressão é um indicador disso.
Esta agitação é
fruto do esgotamento dos resultados da Transição desajeitada. Um Estado com
pouca consciência social e um Estado hierárquico e excludente, que se opôs à
redefinição da Espanha como entidade plurinacional na qual os povos e nações de
Espanha estejam unidos voluntariamente, e não pela força, uma Espanha na qual o
direito de decidir seja generalizado em todo o Estado e a todos os níveis. Daí
a enorme urgência de que as autênticas forças democráticas deixem de lado os
seus sectarismos e diferenças, e que trabalhem juntas para tornar possível uma
rotura real com o sistema herdado da ditadura, com uma alteração nas relações
de força entre as classes sociais e com uma visão diferente do que é a Espanha.
Para isso é necessária uma grande mobilização (pacífica) da população, pois
quando o povo se move, pode mover montanhas. Nunca se deve esquecer que Franco
morreu na cama, mas a ditadura morreu na rua. E a segunda Transição, para uma
Espanha republicana, justa, plural e democrática, vai exigir uma mobilização
semelhante. Mas a história do país mostra que esta é possível.
2 de junho de
2014
Publicado no Público.es
Tradução de Luis Leiria para o www.esquerda.net
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