Neste artigo, Vicenç Navarro diz que a História se
repete, ao referir-se às causas da eclosão do nazi-fascismo, mostrando a
semelhança entre o que está a acontecer, hoje, na Europa, e as circunstâncias
que levaram Hitler ao poder.
Este discurso de Goebblels ilustra o que Navarro
descreve:
“Tiraram-nos toda a
nossa soberania. Contamos, apenas, para que o capital internacional permita
encher os bolsos com os juros que lhe pagamos. (...) Três milhões de pessoas
ficaram sem trabalho ou apoio de qualquer tipo. Os funcionários públicos – é a
pura verdade – só trabalham para ocultar toda essa miséria. Falam em tomar
medidas e em não esquecer os aspectos positivos. As coisas vão cada vez melhor
para eles e cada vez pior para nós. A ilusão de liberdade, paz e prosperidade,
que nos foi prometida, quando quisemos tomar o destino nas nossas próprias mãos,
está a desvanecer-se. Estas políticas irresponsáveis só podem dar um resultado:
o mais completo e total afundamento do nosso povo.”
A História repete-se, é verdade, mas sempre numa
espiral acima, com características novas, resultado do acumular de experiências
e acontecimentos. Se, durante os anos que se seguiram à Grande Depressão de
1929, o espectacular retrocesso da esquerda, a verdadeira, contribuiu para o
fortalecimento dos movimentos nazis e fascistas, hoje, essa esquerda está a
ganhar apoio popular.
AS
ORIGENS DO FASCISMO NA EUROPA, ANTES E AGORA
Por
Vicenç Navarro*
Uma das interpretações da História
europeia mais erróneas e que teve piores consequências na vida política e económica
deste continente é a explicação que se tem dado das causas da subida ao poder
de Hitler e do nazismo, na Alemanha. Um dos argumentos que se têm avançado para
justificar as enormes políticas de austeridade (com cortes na despesa pública,
incluindo a despesa pública social e a baixa de salários), promovidas e
impostas pelo governo alemão aos países da União Europeia e, muito em especial,
aos países periféricos da Zona Euro, como a Espanha, tem sido o suposto temor
(na realidade, pânico) que o povo alemão tem, historicamente, à hiperinflação,
pois, na sua memória colectiva, considera-se que a dita hiperinflação foi a
causa do aparecimento e vitória eleitoral do nazismo, na Alemanha. Daí
dizerem-nos que as políticas de austeridade de agora são necessárias, para
evitar uma inflação que poderia levar-nos à eclosão de um novo fascismo. Se
estivermos a par da literatura científica económica, leremos este argumento
milhares de vezes.
Esta interpretação do que
ocorreu na Alemanha está, contudo, profundamente equivocada, não só na sua
totalidade, mas também em cada um dos seus pressupostos. Comecemos pela
explicação que atribui a vitória de Hitler à hiperinflação. Desta explicação
haveria a deduzir que, quando Hitler foi eleito, a inflação era muito alta, tão
alta que as pessoas, como protesto, votaram nele. Pois bem, vejamos os factos:
Hitler foi eleito no ano de 1933. E, agora, vejamos os dados da inflação
naquele ano. O leitor espantar-se-á, pois verá que não havia nem vestígio de
inflação. Na realidade, a elevada inflação tinha já desaparecido há tempos. E
os dados estão aí. Repito, não havia inflação. Não se pode, portanto, dizer que
a elevada inflação levara Hitler ao poder.
O que se passava, então? É
fácil de ver e entender. Se repararmos na evolução da inflação, veremos que a
elevada inflação teve lugar antes de 1933, na verdade, dez anos antes, nos anos
vinte. Em 1923, dez anos antes da eleição de Hitler, a Alemanha escontrava-se
imersa numa inflação insustentável; em Julho desse ano, 1 dólar equivalia a 1,1
milhão de marcos. Dois meses mais tarde, a 109 milhões. Repito, uma situação
que não podia continuar. Isto forçou o governo a tomar uma série de medidas,
hoje chamar-se-iam austeridade, que tiveram enormes consequências, como também
têm enormes consequências as políticas de austeridade de agora. Uma delas foi o
enorme crescimento do desemprego, que passou de um milhão para seis milhões de
alemães, em apenas três anos, o que representava uma taxa de desemprego de 30%.
Foi esta situação de desemprego e a grande descida do nível de bem-estar da
população que conduziu aos movimentos de protesto, incluindo o nazismo. É isto
que não se diz e deveria dizer-se, porque, hoje, estamos vendo, na Europa, uma
situação muito semelhante, onde as políticas de austeridade estão a gerar o
crescimento de movimentos fascistas (chamados chauvinistas ou o que for), por
todo o território europeu. Não foi a inflação, mas o tipo de resposta que o
governo escolheu – as políticas de austeridade, com uma grande redução da despesa
pública e dos salários - para resolver essa elevada inflação, que gerou o
enorme descontentamento popular e a desafeição pelo regime democrático, tal
como está agora a acontecer.
O segundo ponto erróneo,
nesta interpretação histórica de atribuir à elevada inflação a subida de Hitler
ao poder, está na interpretação das causas da inflação. Não há dúvida de que o
nível de inflação, em 1923, era insustentável. Mas, o que é que causou a
inflação? E a resposta, de novo, é fácil de ver: foram as enormes políticas de
austeridade que os aliados impuseram à Alemanha, derrotada na 1ª Guerra
Mundial. Quem melhor previu as consequências destas políticas foi John Maynard
Keynes, representante do governo britânico em Versalhes, na reunião que definiu
as políticas a seguir por parte do vencido Estado alemão, ao terminar a 1ª
Guerra Mundial, políticas tão punitivas que não permitiam a recuperação da
economia alemã, mediante políticas expansivas, com aumento da despesa pública,
entre outras. Keynes abandonou a reunião, em sinal de profundo desacordo. Tais
medidas não deixavam nenhuma outra alternativa ao governo alemão, senão tentar
crescer à base de imprimir dinheiro, o que fez em abundância, criando a
inflação. E aí está o problema e, também, a semelhança com a actual situação.
A maneira como se construiu
a Zona Euro e a sua governação dificulta enormemente o estímulo económico através
da expansão da despesa pública e do aumento dos salários. Na realidade, o
crescimento económico desceu, na União Europeia, desde que se estabeleceu o
euro. O Tratado de Maastricht e, ainda pior, o Pacto Orçamental, imposto pela
Alemanha, impossibilita que os Estados tenham défice público, forçando a que a
estrutura de poder da Zona Euro e, muito particularmente, do Banco Central
Europeu recorressem a políticas de expansão monetária (isto é, imprimir
dinheiro, como fez o governo alemão, depois da 1ª Guerra Mundial), com o perigo de gerar
inflação. E, para evitar que isso aconteça, está-se a levar a cabo políticas de
austeridade, que estão a destruir o bem-estar da população e a causar o
ressurgimento do fascismo. A História repete-se.
O
que é que está a acontecer, agora?
Hoje, uma das opções
políticas, que canalizam mais o descontentamento popular e, muito em
particular, o da classe trabalhadora, é a da ultradireita, tal como estamos a
ver em vários países. O caso da França é claro. A Frente Nacional, dirigida por
Le Pen, foi a que utilizou, durante a campanha das eleições para o Parlamento
Europeu, um discurso mobilizador da classe trabalhadora, apresentando-se, a si
mesma, sem nenhuma inibição, como o melhor instrumento para defender os
interesses da classe trabalhadora, na luta de classes, frente à oligarquia
nacional que atraiçoara a pátria, vendendo-se à Troika. É o
nacional-socialismo, que, historicamente, teve uma base operária e que, agora,
a recupera, com a cumplicidade da esquerda tradicional (muito especialmente a
social-democracia), ao impor políticas que prejudicam os interesses das classes
trabalhadoras, para aumentar os lucros do capital. Neste discurso, a luta de
classes e a identidade nacional são idênticas, utilizando a bandeira e a defesa
da identidade e da pátria como princípios mobilizadores. Foi uma mistura
ideológica imbatível. Era lógico e predizível que o fascismo ocupasse o vazio
criado pelo socialismo e comunismo. No domingo passado, Le Pen conseguiu o
apoio de 30% dos jovens e 43% dos trabalhadores franceses.
O internacionalismo da
esquerda, no seu compromisso com a Europa, mostrou-se impotente frente ao
nacionalismo do nacional-socialismo. Por outro lado, a identificação da
esquerda com a defesa dos imigrantes é o seu ponto vulnerável, pois parece não
ser consciente de que quem paga os custos da integração dos imigrantes, num
país, são os membros da classe trabalhadora. Escusado será dizer que a
imigração enriquece um país. Mas, os custos inevitáveis que a sua integração
implica, beneficiando toda a sociedade, não podem ser pagos por aqueles que são
mais vulneráveis, absorvendo esses custos. A esquerda, em geral, não tem sido
sensível a esta questão. Acrescente-se a isto que o seu internacionalismo, na
aliança com os outros povos da Europa, carece de credibilidade, devido à sua
cumplicidade com o mundo do capital. O distanciamento dos partidos de esquerda
governamentais (e, muito em particular, os da social-democracia) em relação à
classe trabalhadora tem sido a origem da sua deterioração eleitoral.
Em Espanha, o fascismo (que
adquiriu a sua máxima expressão durante a ditadura, estabelecida com a ajuda do
nazismo alemão e do fascismo italiano) caracterizou-se pelo
nacional-catolicismo, que conjugou um nacionalismo uninacional extremo com um
catolicismo enormemente reaccionário. O golpe militar de 1936 foi feito contra
os vermelhos – socialistas e comunistas – e os separatistas, aqueles que tinham
uma visão de Espanha distinta da do fascismo espanhol.
Esta ideologia
nacional-católica continua muito alargada a sectores da população espanhola, o
que explica a receptividade à mensagem do Partido Popular, ao apresentar-se
como defensor da unidade de Espanha e dos valores cristãos. Isto explica que o
partido político mais instrumentalizado pelos poderes financeiros e económicos,
existentes na Europa e em Espanha, continue a ganhar as eleições, apesar do
enorme dano que as suas políticas causaram às classes populares, inclusive aos
seus votantes. O domínio, por parte do PP, da bandeira e do crucifixo explica a
sua sobrevivência, fruto de uma Transição nada modelar.
O que a esquerda deveria
fazer era criticar este nacional-catolicismo, muito hegemónico, ainda, no
Estado espanhol, mostrando-o como ele é: o encobrimento que esconde o enorme
domínio de uma minoria (servil e dócil com a Troika) frente à maioria dos
diferentes povos de Espanha, que apresentam, como visão alternativa, outra
Espanha, republicana, multinacional, poliédrica, laica, democrática e
socialmente justa.
O Domingo passado mostrou, uma
vez mais, o problema da esquerda, em Espanha. O voto na esquerda foi muito
maior do que o voto na direita. Mas, a direita continuará a governar Espanha. E
seis milhões mais continuarão desempregados, tendo a situação social das
classes populares alcançado níveis desconhecidos de deterioração. Grande parte
da responsabilidade tem-na os dirigentes do PSOE (o partido maioritário da
esquerda), cujas políticas públicas foram responsáveis por esta deterioração,
sendo cúmplices da direita espanhola e da direita europeia, no desenvolvimento
da Europa do capital. A Espanha necessita de uma rebelião do eleitorado e das
bases deste partido, para mudar profundamente a sua direcção e o seu aparelho
partidário. E a esquerda não governante (cujo crescimento aplaudo e considero
muito positivo) deveria transcender os seus interesses partidários e aliar-se
em todo o território espanhol, para agitar o panorama político espanhol, com
amplas mobilizações e exigências de mudança, a todos os níveis, com ampla
participação cidadã, consciencializando a população de que os que governam a
Espanha representam uma minoria muito exígua da população espanhola (11% do
eleitorado), que defende interesses económicos e financeiros muito
particulares, antepondo-os aos interesses das classes populares, que são a
maioria da população.
__________________________
*
Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de
Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona.
É também professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University
(Baltimore, EUA), onde foi docente durante 35 anos. Dirige o programa Políticas
Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e
The Johns Hopkins University. Dirige, igualmente, o Observatório Social de
Espanha.
Sem comentários:
Enviar um comentário