O QUE ELES ESCONDEM

sábado, 28 de junho de 2014


UNIÃO EUROPEIA: UMA NOVA COLONIZAÇÃO (I)

Por Héctor Illueca e Adoración Guamán*

A crise económica que afecta o nosso país e as políticas de austeridade impostas pela troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) estão a provocar uma fractura social cada vez mais evidente. Os cidadãos observam, atónitos, a degradação da vida quotidiana e a tolerância do poder para com os abusos cometidos pelos mais privilegiados do país. Como não podia ser de outra forma, a crescente deterioração das condições materiais de uma cada vez mais ampla maioria social chega acompanhada de gravíssimos escândalos de corrupção, que salpicam o conjunto das elites políticas e económicas, gerando uma sociedade cada vez mais instalada na injustiça e na desigualdade.
Neste contexto, o sonho da integração europeia tornou-se um pesadelo, que impõe um duro presente e nos condena a um futuro sombrio. De forma intencional, ofereceu-se aos cidadãos uma imagem falsa, ideológica e idílica da hoje chamada União Europeia, utilizando os meios de comunicação para projectar uma visão mítica e arredada da realidade: uma União Europeia completamente alheia aos princípios de coesão e colaboração solidários, que se converteu numa espécie de reserva de caça alemã, em que as economias fortes exploram as suas vantagens económicas e comerciais, para esmagar as débeis. Uma União Europeia governada pela lei da selva.

Contudo, a gravidade da situação económica e a queda da máscara do bem-estar individual fazem com que comece a abrir caminho, entre os habitantes da periferia, a ideia de serem vítimas de uma nova colonização. É cada vez mais difícil ocultar que a instauração do euro gerou uma relação centro-periferia, no seio da União Europeia, que enfrenta o Norte central e dominante com o Sul periférico e dominado. Já não é possível negar que a existência da moeda única beneficiou a Alemanha e outros países ricos da Europa, reforçando a sua posição, no esquema europeu, como exportadores líquidos de bens de equipamento e de consumo e como importadores líquidos da procura geral. Dizendo claramente e em poucas palavras: a união económica e monetária permitiu que os países centrais, especialmente a Alemanha, acumulassem excedentes comerciais crescentes, no seu espaço vital europeu, bloqueando qualquer possibilidade de desvalorização competitiva e alimentando uma intensa redistribuição do trabalho, em prejuízo das modestas economias da bacia mediterrânica. Os países fortes do centro, como a Alemanha, Holanda ou Finlândia, aumentam a sua competitividade, conservam a sua soberania nacional e financiam os seus Estados de bem-estar, graças à perda de competitividade, à destruição da soberania e ao desmantelamento do bem-estar dos seus companheiros de moeda – a periferia europeia.
Os trabalhadores do Estado espanhol, juntamente com os das restantes economias periféricas, converteram-se numa reserva de mão-de-obra low cost. Como assinalaram já alguns autores, o processo de construção europeia gerou uma nova divisão internacional do trabalho, alimentando uma dinâmica colonialista, caracterizada pela hegemonia alemã e pela subordinação das economias periféricas (1). É isto que explica que as actuações estatais de controle sobre o mercado e de protecção dos direitos sociais estejam sendo destruídas, ao ritmo dos ditames da união económica e monetária. Quando as exigências do processo entram em contradição com as disposições estatais em matéria de política social, os Estados periféricos procedem à adaptação dos seus respectivos sistemas de bem-estar, sempre no sentido de reduzir a protecção dos direitos laborais e sociais. O dumping social não só não foi combatido, como foi fomentado, fazendo da regulação do factor trabalho um elemento de competitividade e desencadeando um feroz darwinismo normativo, para reduzir os níveis de protecção laboral e social.

A nova divisão europeia do trabalho explica e promove a progressiva destruição dos modelos sociais estatais, auspiciada pela troika e imediatamente perceptível em dois âmbitos fundamentais: a flexibilização dos mercados de trabalho (em concreto, através da degradação da estabilidade no emprego e da desvalorização do custo da mão-de-obra) e a redução da protecção social, em particular dos sistemas de segurança social (redução das pensões de reforma, cortes na Saúde, etc). A sua influência vê-se, igualmente, na reforma educativa do Ministro Wert, também auspiciada pelas instituições europeias, que orienta o sistema educativo para a preparação de mão-de-obra barata, provida dos conhecimentos indispensáveis para responder adequadamente no mercado laboral lixo, que caracteriza os países subdesenvolvidos. A posição dependente e periférica da nossa economia , no esquema europeu, é radicalmente incompatível com a existência de pensões públicas, educação e saúde públicas e um mercado laboral medianamente digno.
Ao aceitar os diktat da troika, as classes dirigentes dos países periféricos assumem a sua incapacidade em encarar um caminho independente para os seus países e pactam uma relação de subordinação e dependência, semelhante à que se produz num processo de colonização clássico, caracterizado pela espoliação sistemática das economias periféricas e pela sobreexploração dos seus trabalhadores. Não devemos esquecer que são as classes dirigentes dos diferentes Estados membros que construíram e aprofundaram este modelo de União Europeia e, sob a sua intocável legitimidade, escudaram-se as mais impopulares e duras reformas. A possibilidade de minar a posição negociadora dos sindicatos alentou a conivência traidora das elites dos países deficitários, alimentando uma aliança sólida e estável com a burguesia alemã, para impor uma nova ordem político-social à escala europeia.

Neste contexto, não deixa de surpreender que determinados sectores da esquerda espanhola e europeia insistam em reformar a eurozona como solução para a actual situação de emergência social e económica. Com certo ar panglossiano, invocando a necessidade de “mais Europa”, criticam a fragmentação da política fiscal e denunciam a actuação de um BCE, disposto a proporcionar abundante liquidez aos bancos, enquanto abandona os Estados endividados, que suportam os ataques especulativos. Como proposta política, reclamam a abolição do Pacto de Estabilidade, a criação de uma autoridade orçamental e a modificação dos estatutos do BCE, para que possa conceder empréstimos aos Estados que atravessam dificuldades. Num arrebato de ingenuidade, chegam, inclusive, a falar de um “euro bom”, com o qual poderia estabelecer-se um salário mínimo europeu, para reduzir os diferenciais de competitividade entre os países.
Trata-se de uma quimera, que paralisou, durante décadas, boa parte da esquerda e do movimento sindical e que bloqueia a construção de uma alternativa, ao serviço das classes populares do nosso país. A zona euro carece de um Estado único europeu e não há nenhuma expectativa de que possa ser criado, num futuro próximo. A unificação da política orçamental suporia uma completa reestruturação da soberania, em toda a União Europeia, construída a partir de uma rigorosa hierarquia de Estados e de um cuidadoso cálculo de interesses nacionais, e necessitaria de um consenso, que não vai acontecer. Qualquer reforma possível iria respeitar a hierarquia de poder existente, caracterizada pelo domínio dos países da zona central e muito especialmente da Alemanha. Para expressar esta ideia com maior precisão: o euro foi o meio utilizado para forjar a hegemonia do capital alemão, que se impõe, inexoravelmente, no cenário europeu e impede a possibilidade de realização de um programa que responda às necessidades das maiorias sociais.

Na nossa opinião, qualquer agenda política que pretenda romper, realmente, com o neoliberalismo, mesmo num sentido reformista, deve encarar seriamente a saída do euro e enfrentar-se à União Europeia como tal. Como refere Costas Lapavitsas (2), a única saída progressista para o nosso povo consiste em abandonar a zona euro e recuperar o controle da soberania, no quadro de uma transferência radical do poder económico e social para o Trabalho. Uma estratégia que começa com o não pagamento da dívida soberana e se amplia com uma saída do euro, que permita ao nosso país escapar do cataclismo da desvalorização interna, imposta pela União Europeia. O nosso país tem futuro, mas um futuro digno passa, necessariamente, por romper com esta Europa e com as instituições desta Europa.
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(1) NAPOLEONI, L. Democracia en venta. Cómo la crisis económica ha derrotado la política. Barcelona, Paidós, 2013.
(2) LAPAVITSAS, C. Crisis en la eurozona. Madrid, Capitán Swing, 2013.

 

UNIÃO EUROPEIA: UMA NOVA COLONIZAÇÃO (II)

A União Europeia foi construída à força de falácias. Desde a sua criação, com a Comunidade Económica Europeia, em 1961, a defesa da paz e da liberdade apareceram como objectivos idealizados, num espaço supranacional, aparentemente baseado em relações de igualdade e solidariedade entre os povos europeus. Este ideal actuou como poderoso engodo para os cidadãos do sul da Europa, muito especialmente para os espanhóis, portugueses ou gregos, que saíam das suas ditaduras com ânsia de entrar no que parecia o clube da democracia e da prosperidade. Para esta idealização contribuiu, de forma notável, o propagandeado crescimento económico que, no âmbito da antiga UE a 15, se produziu (mais em benefício de uns que de outros), durante quase duas décadas e que dotou de legitimidade e de um atractivo inegável o projecto europeu.
Contudo, cedo se demonstrou que aquele “clube” não era garantia nem de democracia, nem de prosperidade, mas uma armadilha para inibir a primeira e arrumar de vez a segunda. Na realidade, e como vimos num texto anterior, a armadilha europeia encobria uma nova colonização, baseada em relações de força e caracterizada pelo domínio dos países do norte europeu, fundamentalmente da Alemanha. O Tratado de Maastricht e o aparecimento do euro desencadearam uma guerra comercial, que devastou as economias dos países periféricos e está a caminho de fazer o mesmo com os sistemas políticos, destruindo a soberania e desmantelando o bem-estar dos Estados que se encontram em dificuldades. Cedo se evidenciou que aquela prosperidade derivava de um prévio e continuado desenvolvimento económico e social, conseguido a nível nacional por Estados configurados no constitucionalismo social do pós-guerra, com dinâmicas intervencionistas e políticas redistributivas, que a união económica e monetária eliminou por completo. Trata-se, nas palavras de Emmanuel Todd, da negação da Europa.

Neste contexto, considera-se imprescindível ultrapassar as margens impostas e atrevermo-nos a encarar a ruptura com as limitações que impedem o avanço de um programa, realizável, de transformação social. Na nossa opinião, a saída do euro constitui uma alternativa necessária, para recuperar a soberania e superar a gravíssima crise que atravessamos. Tratar-se-ia, juntamente com a negação a pagar a dívida ilegítima, do primeiro passo de uma estratégia constituinte, que pretenda o reequilíbrio da economia, no quadro de uma deslocação do poder económico e social para o Trabalho, situando o Estado no posto de comando da economia.
A estratégia tem numerosos e diferentes escalões. De início, é previsível que a desvalorização monetária provoque um aumento da dívida externa, já que teria de liquidar-se numa moeda muito mais valiosa que a nossa e seria impossível continuar a satisfazê-la. No que respeita à dívida pública (à volta de 300.000 milhões de euros) parece ineludível a suspensão dos pagamentos e a realização de uma auditoria pública, para assegurar um corte substancial, que aligeire o peso esmagador da dívida sobre a nossa economia. Consideramos, em particular, que deveria declarar-se ilegítima a contraída pelo Estado para a reestruturação e resgate do sistema financeiro, que implicou uma obscena socialização das perdas acumuladas pela banca, no financiamento das bolhas imobiliárias e da Bolsa.

No que diz respeito à dívida privada, os bancos estariam sob pressão e teriam que enfrentar falências. As tensões que o sector financeiro experimentaria tornariam indispensável a sua nacionalização e a criação de uma banca pública, com o fim de garantir os depósitos e assegurar um financiamento estável às pequenas e médias empresas. Além disso, e fundamentalmente, o controle público do crédito tornaria possível afrontar os desequilíbrios de fundo, que provocaram a crise, convertendo a banca pública num instrumento chave para reverter a financiarização da economia e transitar de um modelo dependente, baseado na especulação, para um modelo baseado na economia real, produtiva e industrial.
Paralelamente, o Estado deveria nacionalizar os sectores estratégicos (serviços públicos, transporte, energia e comunicações) e promover uma política de investimentos públicos que, tendo a protecção e defesa do meio ambiente como pilar fundamental, contribuísse para modificar e renovar a estrutura produtiva do país, travando os processos de desindustrialização e especialização produtiva, que derivam de uma inserção assimétrica na economia europeia. Como alguns autores destacaram, a crise económica está a provocar uma preocupante deterioração da nossa capacidade produtiva, motivada pela debilidade da actividade investidora, descapitalização do tecido industrial e desqualificação da força de trabalho, aprofundando a fractura produtiva, que separa o centro da periferia (1). Neste contexto, a reconversão do modelo produtivo torna-se uma tarefa urgente, sob pena de nos metermos numa rápida e dramática transição para o subdesenvolvimento. Em suma, trata-se de iniciar uma trajectória de crescimento diferente, caracterizada pela intervenção pública na economia, pela colaboração de um sistema bancário público e respeito pelo princípio de sustentabilidade ecológica.

Como corolário do que se disse atrás, a estratégia constituinte teria que abordar dois aspectos cruciais para deter e reverter a ofensiva neoliberal: uma reforma fiscal progressiva e uma profunda reestruturação do mercado de trabalho, como expressão de uma nova racionalidade económica, que sirva os interesses da maioria social. Com efeito, o alargamento da base tributável aos sectores mais poderosos e a perseguição à fraude fiscal permitiriam expandir a despesa pública e melhorar as prestações sociais, especialmente a Saúde e a Educação, que sofreram uma importante deterioração, como consequência dos cortes orçamentais. De igual modo, seria possível a reorganização do sistema de pensões, transferindo recursos do orçamento geral do Estado, para garantir a sustentabilidade do sistema e do poder aquisitivo das prestações (2).
No que diz respeito ao mercado de trabalho, é urgente uma resposta contundente e efectiva à emergência social, provocada pela situação de desemprego e precariedade generalizados, otorgando à legislação laboral um necessário protagonismo político. Antes de mais, enfrentamo-mos com a necessidade de desandar o caminho andado durante as duas últimas décadas, retomando a criação de emprego decente, como eixo nuclear da política económica. Neste sentido, as últimas reformas laborais, aprovadas pelo PSOE (2010-11) e PP (2012-13) devem ser expressamente derrogadas. As novas normas laborais deveriam incentivar a criação de emprego decente, estável e com salários dignos, melhorar as condições de trabalho, prestando uma atenção especial à igualdade efectiva entre mulheres e homens, à corresponsabilidade e à inserção laboral da juventude, assim como ao reforço da negociação colectiva. Partindo desta base, uma das estratégias para combater o desemprego, permitindo uma saída progressista e solidária à grave situação actual, é a redução do horário de trabalho, de forma generalizada, para facilitar a colocação dos trabalhadores desempregados. Esta medida estratégica deveria ser complementada com um aumento significativo do salário mínimo e com a extensão da protecção no desemprego, com o objectivo de contrariar os efeitos mais nocivos do ajustamento interno e dar início a um modelo diferente de distribuição da riqueza produzida pela sociedade.

Nos parágrafos anteriores, resumimos a estratégia que, em nossa opinião, permitiria superar a dinâmica colonial em que nos encontramos, depois da implantação do euro. É claro que o emprego do termo “constituinte” tem um significado preciso e congruente com o programa anteriormente esboçado: a chave está em impulsar um processo constituinte, para realizar uma transição democrática completa, que resolva as graves carências, arrastadas desde a ditadura e que reflicta um novo equilíbrio de forças entre classes e géneros. Não pode haver um reequilíbrio da economia a favor dos trabalhadores sem uma  profunda transformação do Estado numa direcção republicana, plurinacional e democrática, com pleno respeito pelo direito dos povos a decidir. Uma transformação que reflicta uma grande aliança político-social para substituir mecanismos de governo ineficientes e corruptos por transparência e participação popular permanentes. Esta aliança existe, de maneira potencial, na nossa sociedade e poderia materializar-se, se a esquerda política e social se aglutinasse, numa mudança radical, à volta de uma estratégia constituinte, que dispute a hegemonia à oligarquia.
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[1] ÁLVAREZ PERALTA, I.; LUENGO ESCALONILLA, F. y UXÓ GONZÁLEZ, J. Fracturas y crisis en Europa. Madrid, Clave Intelectual, 2013.

[2] Ver, nesta linha de raciocínio, o documento “En defensa del sistema público de pensiones”, disponível em http://documentopensiones.org/
* Héctor Illueca, Doutor em Direito e Inspector do Trabalho e Segurança Social
  Adoración Guamán, Doutora em Direito e Professora de Direito do Trabalho  e  Segurança Social

Os originais destes textos encontram-se em:

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